Ibeji e Iyá Ibeji
Escultura de Marco Aurélio Luz Oju Oba Setembro e outubro são meses que envolvem um riquíssimo repertório do universo simbólico da tradição afrobrasileira, que são as celebrações dos gêmeos conhecidos no catolicismo como Cosme, Damião e na tradição africana Ibejis, em que são ofertados caruru, doces, balinhas, etc. O blog da ACRA resolveu então,trazer para a chamada “blogosfera” uma importante e animada entrevista, onde são desenvolvidas reflexões em torno da tradição africana e a dinâmica da expansão de seus valores. A entrevista foi concedida pelo Professor Marco Aurélio Luz a Márcio Nery de Almeida, Professor, Gestor da Rede Municipal de Ensino de Salvador e pesquisador do PRODESE- Programa Descolonização e Educação.
A entrevista contribui muito, e certamente auxiliará a compreensão do universo simbólico que há muito organiza as comunidades africano-brasileiras, além de permitir o esclarecimento de alguns elementos próprios da liturgia africana. A entrevista foi realizada no âmbito do Seminário Ética da Coexistência e Dinâmicas Territoriais e Comunalidades organizado pelo PRODESE na Universidade do Estado da Bahia no período de 26 a 28 de setembro de 2001. Foi publicada também, no SEMENTES Caderno de Pesquisa,Vol. 3,nº5/6 de 2002 pela Editora da UNEB.Aqui os/as visitantes farão a leitura da primeira parte da entrevista.Na próxima semana apresentaremos a segunda parte.
Boa leitura!
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Márcio Nery de Almeida – Aproveitando a oportunidade de que hoje aqui na Bahia é comemorado o “dia de São Cosme e Damião”, tendo o senhor feito durante o Seminário uma colocação muito interessante sobre o conceito do gêmeo na cultura yorubá – nagô, eu gostaria que o senhor falasse sobre os Ibêjis, ou Ibejis, desse símbolo milenar dos gêmeos na polaridade masculina e feminina e esse outro, esse terceiro que vem como síntese dos dois.
Marco Aurélio Luz – Bem, primeiramente eu queria destacar que a gente tem que partir para entender esses universos simbólicos através da singularidade de cada um deles. Então, por isso, a gente procura distinguir, destacar a diferença entre o culto dos gêmeos Cosme e Damião, que é uma coisa da tradição católica referida a pessoas que existiram e foram mártires do cristianismo, por isso convertidos como santos, dos Ibejis, que é uma categoria da tradição nagô, yorubá, que procura elaborar e reforçar espiritualmente o princípio da fertilidade, o princípio feminino e outro masculino, e a gestação seguinte caracterizada, então, por três elementos: Tayewo, Keindê e Dou. Esses três elementos, um casal mais um, caracterizam esse princípio de fertilidade e constituem-se num elemento, vamos dizer assim, muito importante, porque é uma cultura que visa à expansão da vida, a expansão da existência através da expansão das linhagens, das famílias e, portanto, são muito significativos.
O seu culto envolve a presença de vários orixá. As pessoas são constituídas por orixá, por forças da natureza que constituem os seres humanos, e eles, então, (os orixá) devem se alimentar vamos dizer assim, devem reforçar seu axé, sua energia vital. Os princípios da natureza que os constituem, são revitalizados através das oferendas. E as oferendas aos gêmeos se caracterizam pela variedade da culinária litúrgica ritual, fazendo referencia às diversas qualidades de orixá. Então, o principal para nós, que aí se apresenta, é o caruru ou o amalá, representando a caracterização da fertilidade, à expansão do princípio masculino ligado à expansão; e feminino também porque o amalá compreende a presença de Xangô e Iansã. No caso de Xangô, orixá rei e patrono das dinastias reais de Oyó que cuida dos seus filhos, que cuida de sua gente, ele está presente, portanto, como uma referencia fundamental na expansão das comunidades, das linhagens e das famílias. Iansã, que também é o principio feminino do fogo, também relacionado com o amalá, está presente nessa relação culinária, principalmente pelo acarajé, também um de seus elementos.
Márcio Nery de Almeida- Então quer dizer que o caruru que as pessoas fazem é uma reinterpretação dessa culinária?!...
Marco Aurélio Luz – Não. O caruru que as pessoas fazem, quando é um caruru de preceito, como é chamado, é em razão do fato de serem pessoas que tem uma relação com os Ibeji e, por isso, eles fazem essa festa, fazem a oferenda aos orixá Ibeji que compreende a parte, vamos dizer assim, pública do ritual, que é a distribuição das oferendas caracterizadas por essa culinária litúrgica. Então, chamam as crianças que participam da redistribuição dessa culinária na forma de uma gamela rodeada por elas.
Ali, com eles sentados, são cantados cânticos, tudo mais, e uma vez alimentados esses meninos são alimentados outros, e outros, e outros, e outros, quantos se possa conseguir, alcançar nessa festividade. Quanto mais crianças, mais alimento, mais sinal de prosperidade e fertilidade, sendo uma coisa muito característica da generosidade e da necessidade de zelar uns pelos outros, que faz parte da vida em comunidade, ou da comunalidade, de tradição africana. Então, este é basicamente o caruru de preceito de uma pessoa dedicada a isso. Há varias razões pela quais as pessoas se dedicam a esse orixá. Agora, aqui na Bahia, existem esses desdobramentos, como o chamado caruru sem preceito, que é o que as pessoas fazem, só com as comidas.
Gêmeos
Escultura de Louco, artista da cidade de Cachoeira
Márcio Nery de Almeida- Na tradição africana também existe uma trindade criadora, por assim dizer: Olorum, Obatalá e Oduduá.
Marco Aurélio Luz – Na história da criação do mundo, Olorum – que a gente pode estabelecer uma relação para tentarmos entender isso – a Deus, à idéia de Deus, do criador é uma entidade bastante abstrata, quase inqualificável, porque é a fonte do existir, a origem do existir. Agora, Olorum delega aos orixá mais antigos, essa missão a de criar o mundo: um deles é Orixá – nlá, ou Oxalá, como a gente chama, que está ligado ao ar. É uma existência genérica, é um existir bem original e do qual todos os seres dependem através da respiração, todos estamos ligados a essa massa de ar, de existência, Oxalá. E outro é o orixá Odudua, que é a terra, o interior da terra, onde as coisas são elaboradas em termos de receber e repor, restituir e renascer. O ciclo de nascimentos se dá através da terra, do interior da terra, de processos que ocorrem no interior da terra. Então, é de lá que nós viemos e para lá que nós voltaremos, e assim sucessivamente. “Foi para dar vez aos outros’’. Uma pessoa morreu, faleceu ou fez a viagem, como se diz, foi restituir sua matéria a terra, de onde, uma vez restituída, vai dar ocasião para que sejam feitos novos seres, e assim sucessivamente.
Márcio Nery de Almeida- Inclusive existe um conto que fala que os deuses fizeram os corpos humanos da lama, e a lama ficou chorando, sentindo-se vazia porque as partes tiradas não lhe eram restituídas, devolvidas. Daí a necessidade do ciclo de nascimentos e de mortes...
Marco Aurélio Luz – Isso. A matéria prima, a matéria original da qual somos feitos está representada pela lama, água mais terra, que depois recebe o sopro de Obatalá e Orumilá para termos, então, a existência concreta, individual. Então, assim é elaborada miticamente a criação dos seres humanos, que têm como origem de matéria a lama, que está associada à Odudua, o interior da terra, na elaboração da gestação, e a Nanã também, porque representa o lado da restituição dessa lama. Nana Iku-rê, Nana, representa a morte. Ela é o lado da restituição que permite o novo renascimento.
Márcio Nery de Almeida-Existe verdadeiramente alguma relação entre os dias da semana e os orixá? Por exemplo, dizem que quem nasce na quinta feira é de Oxossi. Existe essa relação?
Marco Aurélio Luz – Há uma serie de indícios que podem caracterizar isso, mas, principalmente, o veredicto de pertinência é feito através do oráculo. Por sua vez, quem sabe manejá–lo e interpretá–lo, é quem pode assegurar a você qual o seu orixá. Para isso, há o sacerdócio dos babalaô, que quer dizer “pai do mistério’’: Baba l´ awô. Baba pai; awô, mistério - pai do mistério. Na África tradicional, na tradição, a formação dos babalaô leva mais de vinte anos, ou por volta de vinte anos. A pessoa passa por vários processos..., convivendo com um babalaô mais antigo. Aí ele é pouco a pouco iniciado e não só sobre a mecânica do jogo e os caminhos do destino. Enfim, é uma coisa assim como um sacerdócio. Há pessoas dedicadas a isso. Aqui no Brasil, essa tradição do babalaô não foi mantida como foi, por exemplo, em Cuba, e como é na África. Aqui, são as mulheres, principalmente as ligadas a Oxum. Miticamente, elas estão em condições de realizar essa atividade oracular, mas não através do processo oracular do Ifá, que é o que caracteriza o Babalaô, mas pelo Erindinlogun que quer dizer dezesseis e mais um, que permite o movimento do cair dos búzios. Esse jogo dos búzios é o que é mais praticado aqui. É o sistema Erindinlogun, que também é consultado para essa finalidade, para dizer qual é o orixá da pessoa. Quanto aos dias da semana, aqui no Brasil, temos uma adaptação, porque na África tradicional as semanas eram até quatro dias. Aqui, na adaptação, a quinta-feira está consagrada a Oxossi, a segunda-feira é de Exu, a terça é de Ossaiyn e Ogun, a quarta é de Xangô e Iansã, a sexta-feira é de Oxalá, o sábado é das Iabás, Oxum e Iemanjá, e o domingo é de todos os Orixá.
Elexin
Escultura de Marco Aurélio Luz
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