sábado, 1 de outubro de 2011
A SOCIEDADE REFRATÁRIA E O ESPELHO MIDIÁTICO
Muniz Sodré
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Apresentamos essa semana uma entrevista memorável concedida por Muniz Sodré ao Canal Comum,abordando questões instigantes,a exemplo:”os rumos do jornalismo hoje e, sobretudo, sobre a formação de uma sociedade em que a mídia não é apenas um mero conjunto de canais transmissores de informação, e sim um verdadeiro entorno social”.
Interessante é a revelação de Muniz ao Canal Comum,afirmando ser “...um narrador, um contador de histórias, uma extensão urbana do akpalô africano e do pajé tupinambá. Conto, tentando pensar. Pensar, diz Nietzsche, é meter o corpo. Eu digo: é arriscar-se corporalmente, como um capoeira, à consciência da paixão de existir."
Acompanhem a entrevista.
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Canal Comum: Muniz, você fez graduação em Direito, Mestrado em Sociologia da Informação e Comunicação e Doutorado em Letras. Como se deu essa passagem para a área da Comunicação? Você já era jornalista no período em que começou a se interessar pela Comunicação? Fale um pouco sobre essa trajetória.
Muniz Sodré: Sim, eu já era jornalista no momento em que me interessei por Comunicação. Isto se deu em 1965, pouco tempo depois de eu ter vindo da Bahia para o Rio, já tendo passado pelo Jornal do Brasil e estacionado na revista Manchete como repórter. Falaram-se de uma bolsa da Cooperação Técnica Francesa para estudar no Institut Français de Presse (atual: IFP et des Sciences de l´Information), em nível de Doctorat de 3ème cycle (aqui equivalia ao mestrado). Fiz o curso e, além disso, freqüentei o famoso CECMAS (Centre d´Études des Communications de Masse), animado por gente como Roland Barthes, Edgar Morin, Georges Friedmann e outros. Creio que meu interesse pelo campo se vinculava de alguma forma a meu interesse pela linguagem. Desde adolescente, tenho proficiência em várias línguas estrangeiras. Voltei a Paris para um pós-doutoramento em 79/80, quando conheci e me relacionei com Jean Baudrillard
Canal Comum:Vamos falar sobre jornalismo. Antes mesmo do STF votar o tema da obrigatoriedade do diploma, você publicou o texto “Viva o Diplomano Observatório da Imprensa. Mas ele se espalhou na internet de tal forma que é fácil encontrá-lo em vários endereços eletrônicos, sobretudo após a decisão do STF. Nesse texto, você diz que a nova face da informação pública pode por em crise a própria identidade do jornalismo clássico como mediação discursiva e como funcionalidade específica de um grupo profissional. Você concorda, então, que com ou sem o diploma o jornalismo já não é mais o mesmo ?
M.S.: Concordo, sim. Com ou sem diploma, o jornalismo jamais será o mesmo. A informação passou a estruturar de modo tão ampliado a sociedade contemporânea que se converteu em seu próprio “solo”. Movemo-nos real e virtualmente num ambiente informacional, e de tal maneira que a comunicação pública deixa de ser assunto exclusivo de jornalistas. No entanto, a informação em si mesma é pura “metástese” sígnica se não for adequada e politicamente interpretada. Por isso, considero que esta tarefa ainda caiba a um grupo específico, que pode receber o nome de “jornalista”, “analista simbólico”, “logotécnico” ou qualquer outro que comporte o sentido implicado. A formação universitária é, mais do que nunca, necessária. Os detratores do diploma, em minha opinião, não têm a correta avaliação do que significa equacionar responsabilidade social com mídia.
Canal Comum: Quais são os grandes dilemas éticos colocados ao jornalista hoje, aqui no Brasil, diante desse quadro de desregulamentação, com o fim do diploma e com a mudança na lei de imprensa e, ainda, com a crise do modelo clássico de jornalismo?
M.S.: Hans Jonas vem introduzindo o conceito de “ética de futuro”. Não é uma ética projetada para os tempos futuros, e sim para agora, quando socialmente nos preocupamos com a cadeia geracional, ou seja, os filhos, as crianças, seres de mentalidade mais plástica e tendentes a serem conformados pela proliferação indiscriminada dos signos. O dilema ético de hoje é provavelmente trazido pela irresponsabilização da informação, como se esta fosse puro objeto, destinado a circular livremente no mercado, sem vinculação social. A liberdade de imprensa em que votou o STF, ao invalidar o diploma, é essa velha liberdade da ideologia liberal, que ampara secularmente as corporações de mídia. O dilema é também decidir sobre a liberdade sem ter liberdade (aquela dada pelo correto saber do fenômeno) para fazê-lo. Temo que os magistrados, entregues ao abstrato formalismo jurídico, não saibam realmente do que estavam falando
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Canal Comum: De que maneira o ciberjornalismo repercute nas formas de sociabilidade? Ainda podemos falar do poder de socialização dos meios de comunicação e, em especial, do jornalismo?
M.S.: O jornalismo de rede (ou “ciberjornalismo”) ainda não disse realmente a que vem, na medida em que suas pautas principais costumam ser copiadas do jornalismo impresso. Quando não se copia, a informação dissolve-se em pílulas, verdadeiros átomos da factualidade, feitas de superfluidade e frivolidade. Mas claro que isto provavelmente não será sempre assim. Acredito na possibilidade de novas formas jornalísticas advindas das inúmeras possibilidades técnicas e culturais oferecidas pela rede. Facebook, twitter, orkut –– todas essas novidades têm o seu poder de mobilização, mas ainda não constituem um jornalismo novo. Até agora, o valor da informação pública na Internet é medido pela pura velocidade. Não é valor, aliás, é um dado técnico.
Imagem disponível em http://infotecnow.blogspot.com/2010/03/o-futuro-da-tecnologia.html
Canal Comum: Você é considerado um dos maiores intelectuais brasileiros. Na área da comunicação, publicou obras paradigmáticas. Em “Antropológica do Espelho – uma teoria da comunicação linear e em rede”, de 2002, você fala do surgimento de um novo bios, o virtual, em que o objeto predomina sobre o sujeito. Você pode falar um pouco sobre isso?
M.S.: Não sou de falsas modéstias, mas tenho de responder que não me considero um dos maiores intelectuais brasileiros. Reservo título para gente como Gilberto Freyre, Raymundo Faoro, Caio Prado Júnior e outros. Apenas tenho tentado refletir com vezo próprio sobre mídia e cultura nacional. O conceito de “bios virtual” é meu, mas me vali de Aristóteles (em Ética a Nicômaco), que fala de três “bioi” na Polis grega, para aventar a hipótese de um quarto bios, que a sociabilidade contemporânea, feita de tecnologia e mercado. Ou seja, a mídia não é um mero conjunto de canais transmissores de informação, e sim um verdadeiro entorno social, cimentado por informação. Acho que esta perspectiva tem conseqüências epistemológicas para os estudos de comunicação.
Canal Comum: O espelho mencionado no título “Antropológica do Espelho” significa o objeto que adquiriu vida própria, através da virtualização?
M.S.: O espelho como objeto que ganhou vida é uma interpretação possível. Mas é também uma metáfora que remonta ao início da Modernidade. Penso, por exemplo, em Comênio, o primeiro grande pedagogo europeu, que concebia o espírito como um “espelho esférico” suspenso no centro de uma sala e receptor das formas de todos os objetos circundantes. O olho, igualmente, enquanto órgão dos sentidos privilegiado pelos modernos, pode ser visto como algo que funcione ao modo desse espelho. Agora, sem dúvida nenhuma, o “espelho” abandonou o corpo e agigantou-se. Hoje, parece que só existimos se refratados no espelho da mídia.
Canal Comum: O livro “Antropológico do Espelho” se tornou uma referência bibliográfica indispensável no período em foi publicado e que continua sendo até hoje. É claro que como toda obra de relevância, apesar de ser bem aceita pela comunidade científica, provocou também muita discussão e críticas. Desde a publicação do livro citado, alguma coisa mudou na sua reflexão sobre o tema principal ali tratado?
M.S.: Claro que, como toda hipótese, a metáfora do espelho comporta dúvidas e discussões. Eu a mantenho, todavia. Acrescentei a ela com “Estratégias Sensíveis – afeto, mídia e política” um aprofundamento da natureza do “bios virtual”. A questão do afeto parece-me responder pelas dificuldades que se tinha com a bastardia cultural da televisão ou das imagens fabricadas em massa. Acabo de publicar “A Narração do Fato – notas para uma teoria do acontecimento”, que é um reexame do jornalismo sob a influência do bios.
Canal Comum: Para terminar, como está sendo a experiência na Biblioteca Nacional. Quais são seus principais projetos?
M.S.: Estou há quase cinco anos à frente da Fundação Biblioteca Nacional. Coube-me restaurar o prestígio daquela instituição bicentenária e implantar bibliotecas municipais nos municípios brasileiros carentes. No próximo ano, ao término de minha gestão, teremos implantado, sob o comando do Presidente da República e do Ministro de Estado da Cultura, 1.074 novas bibliotecas. É um número expressivo, destinado a zerar o déficit. Para você fazer idéia, Gustavo Capanema, à frente do antigo Instituto Nacional do Livro, conseguiu implantar, em vários anos, 700 bibliotecas, o que até hoje se considera um feito. Mas aparentemente, na época de Capanema, biblioteca dava mais notícia de jornal do que hoje. Com a mídia entregue à “livre” frivolidade, dará muito menos.
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Fonte:http://canalcomum.com.br/2010_entrevista_detail.php?item=220
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