De acordo com as histórias da tradição, no início do mundo era o nada. Foi o ato criador de Olorum que proporcionou a existência, primeiramente na presença do ar e depois nas águas e na terra. Neste tempo, ele enviou as Iya-mi Agba, as mães ancestrais na forma de grandes pássaros. Eram sete pássaros. Três pousaram na árvore do bem e três na árvore do mal; o sétimo voa de uma à outra árvore. Assim se caracterizam a força e o poder das mães ancestrais, representadas coletivamente por Oduduwa. Elas tanto podem propiciar o bem-estar, a plenitude da existência, como o mal-estar e a interrupção do desenvolvimento do destino. Elas proporcionam prodigalidade e fertilidade aos que as respeitam e cultuam, e castigam aqueles que as desrespeitam.
Oduduwa e Orixá-nla estão ritualmente representando no igba-du, a cabaça da existência. A metade de cima representa Orixá-nla, poder genitor masculino, a metade de baixo, Oduduwa, poder genitor feminino. No interior da cabaça, matérias massas genitoras, ou um passarinho, terceiro elemento, resultante; a cabaça simboliza o ventre fecundado, resultado de complementação dos princípios masculinos e femininos. Entre as duas metades da cabaça, sucessão de triângulos desenhados, 2 + 1 = 3, ancestralidade em contínua expansão, descendência ininterrupta.
Uma outra história conta-nos como Ogum, orixá primogênito, que abre os caminhos do desconhecido, símbolo de vanguarda, conhecedor da floresta, caçador e guerreiro, patrono da arte da metalurgia que engendra civilização, enfrentou os poderes das mulheres comandadas por Iyansã, orixá do vento e do relâmpago, e como os homens então tornaram-se senhores absolutos do culto aos Egungum.
O ato criador de Olorum diferenciou a idéia de caos da idéia do existir. O existir se caracteriza pela diferença entre forças em constante movimento formando um ciclo vital. Essas forças se caracterizam pela multiplicidade e necessária complementação. A expressão da existência é o resultado da complementação harmoniosa dos múltiplos e diferentes aspectos gerados do existir. Assim como a natureza é regida por forças que se manifestam nos distintos elementos que a compõem, a sociedade também se constitui dessas forças, pois elas regem o cosmo incluindo as sociedades. Portanto, a sociedade é um aspecto da ordem da existência que se caracteriza pelo sentido de complementação e harmonia das diferenças que a destingue do nada, do não existir, do caos.
A origem das cidades se liga diretamente à história dos seus fundadores, que a estabelecem com as regras que firmaram a continuidade da tradição direcionada no sentido de harmonizar as diferenças. Por sua vez, o exercício da aceitação da diferença, da alteridade, permite a instauração das identidades e da linguagem que caracterizam os lugares e poderes sociais. A hierarquização dos poderes que deve visar sua necessária complementação, constitui as identidades e institui valores sociais e políticos. Os fundamentos da ordem social portanto são transcendentes. Ela adquire sentido a partir de seu passado original que se realiza no presente e se projeta no futuro sucessivamente. A identidade de um grupo social, de uma cidade, de um reino ou de um império, se constitui transcendendo seu presente, retornando seu sentido a partir de seu passado projetando-o no futuro.
A linguagem pela qual uma sociedade se constitui e comunica seu próprio existir se refere a seu momento original que lhe empresta sentido ou destino. Este destino está dado na linguagem através dos relatos que se referem a sua fundação, quando surgiu da instalação de um ou mais Orixá, de um ou mais ancestrais, em determinado território com determinado povo. Cada cidade possui seu orixá patrono e seus ancestrais fundadores. A política do sagrado se caracteriza por re-ligar e presentificar o sentido originário que empresta identificação, linguagem e comunicação à sociedade. O poder político se realiza em meio à tensão dialética entre o mundo sagrado das forças que regem o universo, de um lado, e a sociedade, de outro. Os orixá e ancestrais, de um lado, e os seres humanos, de outro, em relação transcendente-imanente e vice-versa. É a tensão entre os ara-orum, os habitantes do orum, o além, e os araaiyê, os habitantes desse mundo, que através dos ritos empresta sentido à ordem do exercício do poder. O exercício do poder transcendente-imanente é emanado, portanto, em última instância, dos orixá e ancestrais que dele participam num aqui e agora. Essa característica transcendental da ordem política é que instaura a hierarquia assentada nos valores da antigüidade ritual-institucional e na sua descendência. Quanto mais um indivíduo, uma família, uma sociedade cumpra o seu odu, o seu destino ou seu ciclo de existência, plenamente, sem que sejam proporcionados males que afetem e o interrompam através da morte prematura, é sinal que foram sábios no lidar com as forças invisíveis que regem o existir.
Antiga escultura em bronze do Oni Ifé
O oba, rei, é aquele que com sua corte, sacerdotes, e súditos consegue a harmonia social concretizando o sentido benéfico das forças que regem o universo, atendendo as prescrições litúrgicas, re-alimentando as forças dos orixá e ancestrais através das oferendas determinadas e dos festivais anuais.
Oni Ifé, rei de Ifé, a cidade sagrada.
Foto Marco Kalisch 1981
Em Oyó, capital política do império nagô, o posto de Obaxorum é tão importante quanto o de Alaafin, o rei. O Obaxorum é o rei que trata das coisas do reino a partir do sentido emergente do orum. Ele é considerado ara oba o jé, integrante do corpo real. Ele compartilha o poder com o Alaafin. Neste ponto, ancianidade e ancestralidade ritual-institucional revelam sua razão de poder e hierarquia. Os critérios de identificações estabeleceram os iniciados mais velhos como os mais capazes de re-ligar e atualizar o sentido das forças do orum ao aiyê, por deterem a sabedoria acumulada através da experiência ritualizada de introjeção de axé, que lhes permite aproximar-se e lidar com o perigoso mundo das forças que regem os ciclos do existir. O poder se concretiza e se realiza através do exercício e da experiência em saber controlar as forças da existência genérica e abstrata, transcendente e imanente, portanto, em tensão dialética com a existência concreta individualizada, visando propiciar a plenitude do destino da sociedade. Na cultura nagô, a aspiração de todos está representada no conceito oracular de alafia, que significa plenitude de realizações das potencialidades do destino. Para tanto, é preciso saber lidar com forças ambivalentes criativas
Conselho de Anciãos de Ifé.
Foto Marco Kalisch 1981
Os mais velhos são aqueles que estão mais próximos dos ancestres, sua transcendência está assegurada pela continuidade de suas linhagens, tanto no que se refere a sua ascendência, seu passado, como em sua descendência, seus filhos, que lhes assegurarão sua existência em outro plano após a morte, e sua palavra como Egungungun terá força de lei. Mas, se de um lado o poder político ancora-se na transcendentalidade do reino, de outro ele é exercido no aiyê e, portanto, exige ações específicas neste plano do existir. É nesse plano que atuam o Alaafim, seus ministros, seus conselhos, chefes militares e seu corpo administrativo. Suas ações decorrem desta tensão dialética transcendente-imanente característica das relações entre o orum e o aiyê. Para tanto, o Alaafin deverá receber a anuência dos ancestres do palácio, que representam os ancestres das linhagens fundadoras do império nagô-yoruba, que têm como sacerdote máximo o Alapini, ipekun ojé. Das formalidades que caracterizam a coroação do Alafim: este receberá a coroa de folhas de Akoko, como símbolo de outorga dos poderes da ancestrabilidade do império. É neste ponto que se situam as observações de Wande Abimbola, presidente da Conferência Mundial de Tradição dos Orixá e Cultura, conclamando o povo desta tradição à maior participação política. A política do sagrado desdobra-se e completa-se em atuações no aiyê, na constante tensão dialética com as forças emergentes do orum.
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Notas
1. Cf. Santos, E. Juana, filme Iya mi Agbá, mito e metamorfose das mães nagô. Secneb, Salvador, 1979.
2. Cf. Santos, E. Juana. Os Nagô e Morte, Ed. Vozes, Petróbras, 1976.
3. Idem.
Fotos disponíveis na internet, exceto as de Marco Kalisch
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