E quantas emoções!!!
Uma observação:essa festa que tende a estabelecer comportamentos que transgridem e subvertem a ordem moral asséptica,angelical extensão do colonialismo, é regida pelo calendário do cristianismo.O nome carnaval nesse contexto cristão, significa “adeus à carne” ou "carne vale".
“A festa carnavalesca surgiu a partir da implantação, no século XI, da Semana Santa pela Igreja Católica, antecedida por quarenta dias de jejum, a Quaresma. Esse longo período de privações acabaria por incentivar a reunião de diversas festividades nos dias que antecediam a Quarta-feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma. A palavra "carnaval" está, desse modo, relacionada com a idéia de deleite dos prazeres da carne marcado pela expressão "carnis valles", que, acabou por formar a palavra "carnaval", sendo que "carnis" do grego significa carne e "valles" significa prazeres.”(Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval)
Imaginem!!!
Há registros que no Brasil, o carnaval surgiu em 1641 para homenagear o rei Dom João IV que restaurou o trono de Portugal. O carnaval no contexto colonial,monárquico e do império vai se caracterizar com um espaço de diversão para a elite branca no Brasil.Essa elite cria um espaço carnavalesco através dos entrudos portugueses,manifestação que consistia em brincadeiras entre os “foliões” de jogar água uns nos outros,pó de cal,vinagre,e por aí vai...
Segundo historiadores, “... o entrudo, importado dos Açores, foi o precursor das festas de carnaval, trazido pelo colonizador português. Grosseiro, violento, imundo, constituiu a forma mais generalizada de brincar no período colonial e monárquico, mas também a mais popular. Consistia em lançar, sobre os outros foliões, baldes de água, esguichos de bisnagas e limões-de-cheiro (feitos ambos de cera), pó de cal (uma brutalidade, que poderia cegar as pessoas atingidas), vinagre, groselha ou vinho e atéoutros líquidos que estragavam roupas e sujavam ou tornavam mal-cheirosas as vítimas. Esta estupidez, porém, era tolerada pelo imperador Pedro II e foi praticada com entusiasmo, na Quinta da Boa Vista e em seus jardins, pela chamada nobreza... E foi livre até o aparecimento do lança-perfume, já no século XX, assim como do confete e da serpentina, trazidos da Europa.” (http://www.miniweb.com.br/cidadania/Dicas/carnaval.html)
Carnaval das elites no início do século XX.Foto disponível em http://jornale.com.br/
Tempos depois, surge a manifestação carnavalesca conhecida como Zé Pereira uma sátira a figuras populares das cidades,bairros,etc. A maioria da população formada principalmente por negros, não podia compartilhar desses espaços carnavalescos regidos pela política de embranquecimento em voga desde o tempo de D.João VI se estendendo até a República,restringindo-se a uma elite constituída por brancos .
A população negra se impõe nos espaços dos carnavais das cidades brasileiras, (re) criando de modo surpreendente os valores da civilização africana desdobramentos das comunidades afrobrasileiras que ocupavam territórios próprios,a exemplo da “pequena África” no Rio de Janeiro como se referia o compositor Heitor dos Prazeres, e a “Bahia a Roma negra” assim chamada por Mãe Aninha.
São desdobramentos das comunidades afrobrasileiras caracterizadas como “pequenas Áfricas” e” Romas negras”,a criação de instituições valiosas, que vão constituir a dinâmica da subversão a ordem da política de embranquecimento representada pelos entrudos e Zé Pereira,e fundar territórios caracterizados pelas linguagens africanas.Estamos nos referindo aos ranchos de carnaval, como o Rosa Branca de Tia Ciata;os afoxés, como o Pae Burokô do Mestre Didi;as Escolas de Samba,blocos de índios e blocos afro que vão africanizar o carnaval brasileiro,reterritorializando-o ,estabelecendo insurgências eternizadas pelas mensagens éticas e estéticas anunciadas nas alegorias,figurinos,danças,ritmos,músicas,etc.
Troça carnavalesca Pae Burokô.Integrante da troça carrega o boneco criado por Mestre Didi em 1942 como um dos símbolos do afoxé.Foto disponível em http://carnaval.bahia.com.br/noticias/afoxe-pai-buruko-desfila-no-terreiro-de-jesus
No seu livro “Do Tronco ao Opa Exim”, Marco Aurélio Luz desenvolve análises interessantes sobre o carnaval no Brasil,uma delas destaca que face às expressões do carnaval com características afrobrasileiras a elite dirigente radicaliza ao apelo jurídico da política de embranquecimento.A polícia e imprensa serão canais de repressão importantes para inibir as instituições carnavalescas afrobrasileiras.
Um jornal na Bahia no início do século XX em 1901:” Começaram infelizmente,desde ontem a se exibir em algazarra infernal,sem espírito nem gosto,os célebres grupos africanos de canzais e búzios,que, carnavalescas,deprimem o nome da Bahia,com esses espetáculos incômodos e sem sabores.Apesar de, nesse sentido,já se haver reclamadoda polícia providências,é bom,ainda uma vez,lembrarmos que não seria má a proibição desses “candomblés” nas festas carnavalescas “(LUZ,Marco Aurélio.Do Tronco ao Opa Exim.Rio de Janeiro:PALLAS,p.103)
E ainda no mesmo jornal em 1903:”O carnaval deste ano,não obstante o pedido patriótico e civilizador,que fez o mesmo,foi ainda a exibição pública do ‘candomblé’,salvo raríssimas exceções...Se alguém de fora julgar a Bahia pelo seu carnaval,não pode deixá-la de colocá-la a par da África e note-se,para a nossa vergonha,que aqui se acha hospedada uma comissão de sábios austríacos que,naturalmente,de pena engatilhada vai registrando esses fatos para divulgar nos jornais da culta Europa,em suas impressões de viagem” (LUZ,Marco Aurélio.Do Tronco ao Opa Exim.Rio de Janeiro:PALLAS,p.103).
Apesar da repressão alimentada pela ideologia do embranquecimento as “pequenas Áfricas” conseguiram afirmar suas linguagens criativas,incluam-se nelas os blocos de índios em Salvador inspirados nas lutas e formas de resistências dos aborígines nas Américas face à colonização e suas políticas genocidas.Exemplos:Embaixada Mexicana (1949),Apaches do Tororó (1966),Comanches (1975) e Sioux (1977).“No fim do século XIX e na primeira metade do século XX,os negros baianos já haviam se organizado em blocos de índio,inspirados nos aborígines do Brasil e nos índios do México.Pierre Verger chegou a fotografar a Embaixada do Mexicana,no carnaval de Salvador em 1949.Este tipo de entidade começou a se organizar a partir das proibições a que foram submetidos os prétitos dos clubes com temáticas africanas.” (Cf.GUERREIRO,Goli.A Trama dos Tambores.Salvador:Editora 34,2000,p.85)
Mestre Sala e Porta bandeira da Escola de Samba Mangueirahttp://www.flickr.com/photos/nelsoncerinofestaspopularesbaianas/4370937814/
Por outro lado,não podemos esquecer que “a imagem do índio na figura do caboclo,já era cultuada como ancestral,os donos da terra,os fundadores da terra.Nos terreiros tradicionais afrobrasileiros há o culto ao caboclo.A figura do índio penetrou na sociedade em geral como símbolo da independência e figura romantizada em José de Alencar e Gonçalves dias.Na Bahia a referência ao caboclo está representada no desfile da independência com a exibição das estátuas em cera do caboclo e da cabocla.Nada mais pertinente e estratégico,como usar a referência do índio no espaço do carnaval para marcar a conquista de território e afirmação de identidade,estamos lidando com oprincípio inaugural :o fundador da terra,dono da terra,nosso ancestral”(entrevista de Marco Aurélio Luz para o blog da ACRA 27/02/2011).
Século XXI e os carnavais das cidades brasileiras foram inundados por esses valores da ancestralidade aborígine e africana!
Hoje novas questões aparecem como desafios urgentes para superarmos o monopólio de uma linguagem que cala a diversidade de culturas das nossas cidades, saturando todos os espaços,tentando devorar a vitalidade dos afoxés e blocos afros.
A imprensa que no início do século XX utilizando a forma impressa de comunicação,como já vimos, criticava e achava vergonhosa a presença das instituições carnavalescas afrobrasileiras,hoje utilizando canais midiáticos mais sofisticados e rápidos na circulação de informações,impõe um modelo de carnaval para atender a uma minoria “branca” como dizia nossos/as antepassados/as “para inglês ver” e insistem em dizer que é o carnaval genuíno brasileiro.É muito comum ouvirmos comentários na televisão (vitrine da ideologia do embranquecimento) se referindo há algum bloco da elite baiana:”Esse bloco só tem gente bonita!”
“Os blocos de trio,em geral, hoje possuem homólogos valores aos da TV,visam essencialmente ao lucro,realizam show de comunicação de massa,veiculam propaganda,se atrelam à indústria cultural...” (LUZ,Marco Aurélio.Do Tronco ao Opa Exim.Rio de Janeiro:PALLAS,p.115).
Carnaval pelas ruas de Olinda em Pernambuco foto disponível emhttp://www.flickr.com/photos/nelsoncerinofestaspopularesbaianas/4370937814/
As linguagens afrobrasileiras persistem,recriam,subvertem e continuam surpreendendo e expandindo os valores de sua civilização.
Mas é claro que esse brevíssimo histórico sobre o carnaval não acaba aqui.Esse texto é um convite para vocês refletirem conosco aspectos sobre as tensões e conflitos que envolvem o nosso carnaval.
Para saber mais além das referências citadas no texto, visitem também no blog da ACRA a postagem de 08 de fevereiro de 2010”AFOXÉ É DE ORIGEM NOBRE” colaboração de Marco Aurélio Luz.
Artigo de Marco Aurélio Luz publicado no Jornal a tarde sobre o afoxé Pae Burokô
Para ilustrar essas reflexões selecionamos alguns vídeos divertidosque passeiam no tempo trazendo em alguns sucessos carnavalescos,interpretados de várias formas nos ajudando a pensar na abordagem apresentada.
Assisti o carnaval em Salvador pela TV.Verifiquei que as tensões e conflitos continuam se agravando pelas vaidades postas nas vitrines via internet,TV,individualismos dos chamados "artistas"...E a geografia imposta para o carnaval?Nossa!!!Não é a Bahia mesmo!Ou melhor como dizia o poeta:"Triste Bahia.Oh quão dessemelhante"
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