Por Narcimária Correia do
Patrocínio Luz
Nas
sociedades tradicionais africanas, o cabelo simboliza a identidade profunda
individual e coletiva de gerações. O cabelo africano é um patrimônio milenar e,
como tal, constituiu uma das formas de comunicação mais radicais na dinâmica
dos vínculos de sociabilidade que atravessaram o Atlântico.
Cor, textura,
cortes, tranças, penteados com adornos, tudo entrelaçado, comunicando narrativas
que contam histórias de linhagens, famílias, instituições, hierarquias, papéis
sociais que estruturam as relações primordiais que envolvem crianças, jovens e
anciães nas comunidades.
Chamo atenção também para as formas de
reterritorialização histórica das populações negras nas Américas e Caribe, que
encontram na plasticidade do cabelo africano, próprio das culturas de
participação, a riqueza estética que permite a expressão possível de um corpo
livre em permanente movimento de afirmação identitária.
Cantor e Compositor Bob Marley
Professora e Ativista Ângela Davis nos anos de 1970
Imagem disponível em http://www.huffingtonpost.com/henry-a-giroux/angela-davis_b_3055913.html
Atriz
Lupita Nyong'o
Venceu o Oscar 2014 de melhor atriz coadjuvante no filem 12 Anos de Escravidão
Imagem disponível em http://www.cnbc.com/id/102460030
Apesar do rico universo simbólico que
constitui o cabelo como extensão do patrimônio civilizatório milenar africano,
contemporaneamente ainda assistiu atônito a crianças, adolescentes, jovens e
adultos submetidos a constrangimentos inaceitáveis por anunciar em suas cabeças
esse vínculo ancestral com a África.Refiro-me aos discursos estéticos fixados na ideologia do recalque e racismo, que há séculos agridem as populações negras.
Gabriela Monteiro graduanda de Design de moda da PUC-Rio ,assim como muitos descendentes de afrricanos/as no Brasil e no mundo, esta semana foi alvo de racismo por parte de duas
professoras que fizeram piadas e
comentários de cunho racista sobre o cabelo.
Imagem disponível em http://brasileirissimos.xpg.uol.com.br/caso-de-racismo-na-puc-rio-ganha-notoriedade-ao-ser-divulgado-em-perfil-de-aluna/
Já
tive oportunidade de abordar aspectos do carnaval, destacando as geografias que
recortam e modulam os espaços da folia momesca, agudizando tensões e conflitos
entre civilizações. Aqui vou me referir a duas geografias: uma envolta no manto
civilizatório neocolonial, alicerçada na política do embranquecimento,
insistindo em constranger as mulheres negras por meio do estereótipo da “nega
do cabelo duro que não gosta de pentear”, e o pior, o convite à agressão: “pega
ela aí!”, “pra quê?”, “pra passar batom”.
No carnaval de Salvador, essa música entra
na classificação do mercado capitalista de “axé music”, aliás, essa sigla nada
tem a ver com a complexidade semântica africano-brasileira. O mais triste de
todo esse cenário é que, para homenagear os trinta anos desse “gênero musical”,
a “nega do cabelo duro...” foi cantada em cima de um trio que trazia mulheres e
homens negros vestidos com roupa e adereços da tradição africana. Muito triste!
A
outra geografia está alicerçada nos valores e linguagens da civilização
africano-brasileira presentes nas comunidades que singram vários bairros
tradicionais de Salvador. As comunidades africano-brasileiras recusam
veementemente a geografia do recalque que tenta deturpar e desmoralizar valores
fundamentais do seu patrimônio civilizatório.
Vista aérea da Lagoa do Abaeté no bairro africano-brasileiro de Itapuã
Imagem disponível em http://cartografia0905.blogspot.com.br/2012_06_01_archive.html
Nessa geografia africano-brasileira
nagô, axé é palavra sagrada, compõe a semântica do universo simbólico que dinamiza
a atmosfera litúrgica do aiyê (mundo
visível) e do orun (mundo invisível). Axé é pulsão das narrativas míticas que nos religam ao orixá e nossos ancestrais.Axé é força! Palavra pronunciada que carrega a energia vital que dá sentido ao nosso existir individual e coletivo.
Imagem disponível em http://www.jornalismo.com.br/index.php/conchinhas-do-mar-da-vida/mobile-com-conchas-do-mar1/
No
discurso estético do carnaval africano-brasileiro, inclua-se aí a plasticidade
dos cabelos com seus penteados e adereços interagindo com a música percussiva,
vestuário, danças e dramatizações, as mulheres negras são abordadas pela
imponência e integridade que as caracterizam.
Desfile do bloco afro Bankoma
Imagem disponível em http://www.ibahia.com/detalhe/noticia/bankoma-prepara-cd-em-comemoracao-de-15-anos-do-bloco/?cHash=d239685672e1587fb4eb3dacb3a8d36d
Mulheres negras que são lideranças
expoentes nas Américas e Caribe, fundadoras de instituições, comunidades,
famílias, elaboram e promovem a expansão de conhecimentos profundos que dão
dignidade e asseguram a expansão comunitária. Exemplos fundamentais dessas
trajetórias femininas na história do carnaval no Brasil são os ranchos de
carnaval, como o Rosa Branca de Tia Ciata, as Escolas de Samba, afoxés e blocos
afros que africanizam (parafraseando Marco Aurélio Luz) o carnaval brasileiro, reterritorializando-o,
estabelecendo insurgências eternizadas pelas mensagens éticas e estéticas
anunciadas pelos cabelos, alegorias, figurinos, danças, ritmos, músicas etc.
A Velha Guarda da Mangueira
Imagem disponível em https://falacarioca.wordpress.com/2011/04/01/roda-de-samba-com-velha-guarda-da-mangueira/Rosa
Branca de Tia Ciata
No
seu livro A Cidade das Mulheres, Ruth
Landes, antropóloga americana que na década de trinta esteve no Brasil,
destacou que na Bahia: “[...] as mulheres negras encontraram mais
reconhecimento, do seu próprio povo [...] Uma distinta sacerdotisa chamou a sua
cidade de Roma Negra, dada a sua autoridade cultural; foi aqui que as mulheres
negras atingiram o auge de eminência e poder, tanto sob a escravidão como após
a emancipação. Controlando os mercados públicos, as sociedades religiosas e
também suas famílias.” (LANDES, 1961:112)
A
sacerdotisa que usou a expressão Roma Negra a qual se referiu Ruth Landes foi
Mãe Aninha, a Iyá Oba Biyi, fundadora da comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá
e que acolheu e orientou a iniciativa do Mestre Didi, em 1935, de criar o de
afoxé Pae Burokô.
Mãe Aninha
Imagem disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%AAnia_Anna_Santos
Mestre Didi Asipá
Imagem disponível em http://www.jornalopcao.com.br/posts/ultimas-noticias/morre-o-artista-plastico-mestre-didi
Subvertendo
os espaços do carnaval, saturado pela estética da política do embranquecimento
e seu discurso perverso da “nega do cabelo duro que não gosta de pentear”, dois
exemplos aqui são bem-vindos: bloco Didá que levou para as ruas no carnaval as
linguagens estéticas das mulheres negras que vivem a identidade profunda das
comunidades africano-brasileiras.
Bloco Didá carnaval 2015
Bloco Didá carnaval 2015
As componentes do bloco desfilaram de modo
imponente, apresentando a dinâmica plástica dos cabelos e com vestes e adereços
fazendo alusão ao princípio feminino das águas doces, representadas por Oxum,
orixá patrono da fecundação e da gestação.
Bloco Didá carnaval 2015
Outro momento singular foi a saída majestosa
do bloco afro Ilê Aiyê adornado pelos rituais da tradição presididos pelas
lideranças femininas que dão continuidade aos ensinamentos de Mãe Hilda.
Saída do Ilê do Curuzú Carnaval 2015
A
emoção atravessa a avenida, com o Ilê arrastando uma multidão cantando com
força e muita vibração músicas que marcam a identidade do bloco afro, como os refrãos
das músicas:
DEUSA
DO ÉBANO de Geraldo Lima
“[...] Minha crioula/ Eu vou contar para você/
Que esta tão linda/ No meu bloco Ilê-Aiyê/ Com suas trancas muitas
originalidade/ Pela avenida cheia de felicidade/ Minha deusa do ébano [...]”
Mulheres que integram o bloco afro Ilê Aiyê
NEGRUME
DA NOITE de Paulinho do Reco
“Constituiu
um universo de beleza/ Explorando pela raça negra/ Por isso o negro lutou/ e
acabou invejado/ E se consagrou/ Ilê, Ilê Aiyê/ Tu és o senhor/ Dessa grande
nação (Dessa grande nação meu irmão) / E hoje os negros clamam/ A benção, a
benção a benção.”.
Refrãos
que afirmam a imponência das linguagens africano-brasileiras que persistem,
recriam, subvertem e continuam surpreendendo e expandindo os valores de civilização.
Imagem disponível em http://vibedoamor.com/tag/criancas/
A
seguir temos o prazer de compartilhar os vídeos que apresentam as músicas DEUSA
DO ÉBANO de Geraldo Lima interpretada por Lazzo Matumbi e NEGRUME
DA NOITE de Paulinho do Reco.
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