domingo, 15 de dezembro de 2019
OWÔ DINHEIRO
Por Narcimária Luz
Para refletir sobre os aspectos que tratamos “self made man” e sua extensão o “homo industrialis” ,nada mais oportuno do que apelar para um conto mítico que se desdobra do universo existencial característico da ancestralidade e visão de mundo africano.Neles tradição e contemporaneidade se intercambiam,estruturando linguagens e valores do patrimônio simbólico desse continuum civilizatório.
Os contos míticos reúnem sabedorias milenares cujos princípios éticos conduzem , influenciam e atualizam o viver cotidiano das comunalidades de base africana.
O conto que veremos a seguir é de Mestre Didi e absorve de modo extraordinário a pedagogia iniciática africana que estrutura a identidade das crianças e jovens das comunalidades africano-brasileira .
Nossos filhos costumam ser educados com os valores éticos transmitidos pelos contos e a partir deles aprendem a lidar com os valores da sociedade oficial caracterizadamente prometeica .
Há muitos anos passados, Oxalá teve um filho por nome Dinheiro, muito presunçoso e arrogante, a ponto de dizer a Oxalá, seu pai e rei, na presença de várias pessoas, que era tão poderoso quanto ele, pois era acostumado a andar com Morte e levá-la para qualquer lugar.
Para dar prova disto, um dia ele saiu pensando como poderia trazer presa de qualquer forma Morte, conforme tinha dito a Oxalá, na presença de todos do reinado.
Nisto, ocorreu-lhe a idéia de deitar-se em uma encruzilhada. Dito e feito, logo que encontrou uma, deitou-se nela, ficando quieto, aguardando o que poderia acontecer. As pessoas que passavam pela estrada e se deparavam com ele deitado ali na encruzilhada, diziam: - Chi ! como está aquele homem deitado ali, com a cabeça para a casa de Morte, os pés para a porta da Moléstia e os lados para o lugar da Desavença.
Depois de ditas estas palavras pelas pessoas que por ali passavam, e que ele se achou sozinho, levantou-se e disse ; - então “de ironia” já sei tudo o que era preciso saber e conhecer; estou com os meus planos feito. – E lá se foi ele direitinho para a casa de Morte.
Chegando na chácara dela, começou a bater nos tambores funestos de que Morte fazia uso, quando queria matar as pessoas indicadas.
Assim ele, que já estava de posse de uma rede que tinha conseguido no caminho, ficou preparado, aguardando que a morte viesse a ele para reclamar.
Dito e feito, Morte, ouvindo os sons dos tambores, chegou bastante apressada a fim de saber quem estava tocando.
Dinheiro envolveu-a na rede e levou-a ao maioral Oxalá, dizendo-lhe estas palavras :- Aqui está Morte que prometi trazer em pessoa à vossa presença.
Oxalá respondeu : - Vai-te embora com Morte e tudo de melhor que possa levar do mundo, pois tu és o causador de tudo de bem e de mal. Suma-se daqui! Leve-a e pode passar a conquistar todo o universo.
Por este motivo é que, por causa do dinheiro, todas as qualidades de crimes têm sido e continuam a ser praticadas.
Oxalá é o orixá que representa o ar e é o responsável pela criação dos seres humanos e das árvores.Está relacionado a cor branca,”(...) o axé, sangue branco... caracterizado por substâncias minerais como o giz, metais brancos, como prata e chumbo,pela seiva da palmeira igi-ope,pelo algodão,pelo sêmen ,pelos ossos e pela chuva.Pela chuva-sêmen que fertiliza e fecunda a terra regenerando-a e proporcionando o brotar das sementes.(...)Apresenta representações simbólicas de progenitura,capacidade de gerar filhos,de expandir a descendência,multiplicação dos seres tanto no aiyê como no orun.”(LUZ,1995:89_)
Oxalá possui poderes que garantem a existência e pela sua importância no panteão nagô ele merece respeito e atenção.Se for contrariado ou desrespeitado ele pode causar grandes danos tal o seu poder.
O dinheiro no mundo africano tem uma outra conotação e representação diferente do Ocidente.O “dinheiro” como modo de troca está ligado a fertilidade e a restituição. Nos antigos reinos Yorubá a moeda eram os búzios que tinham um valor inestimável, pois representam ancestralidade.
Os ornamentos de determinados orixá apresentam constelações de búzios, caracterizando expansão de linhagens sucessão de ancestralidade.
Na concepção de fertilidade está presente a idéia implícita de restituição de, morte.Assim, o poder da fertilidade e restituição andam juntas.
No conto o desafio do mais novo ao mais velho ,inclusive considerando o poder ancestral contido em Oxalá, é uma quebra de valores significativos da tradição e compromete a harmonia e coesão comunal.No conto o desafio do filho ao pai é motivado pelo grande poder de representação do Dinheiro ao qual nos referimos.
O poder do Ocidente é caracterizado pelo dinheiro e toda a onipotência que ele pode exprimir.”Na forma mercantil desenvolvida o dinheiro é o portador da síntese da sociedade.O dinheiro é o equivalente geral ‘as mercadorias,nele transcorre a unidade abstraída do mundo e se viabiliza a constituição inconsciente da sociedade,pois seu efeito sintético-social se impõe por sobre as consciências empíricas individuais.(...) O ato de troca mercantil pode ser descrito como um movimento que transcorre num tempo e num espaço contínuos e vazios, de natureza abstrata e a-histórica.(...)Nesta identificação a natureza é concebida como uma esfera dissociada da sociedade,da qual o ser humano, em tanto que sujeito seausenta.”(BARTHOLO,1986:52)
A arrogância ,o egoísmo,o poder de destruição , a desarmonia a denegação da morte as tentativas de obtenção de um poder absoluto denegando a ancestralidade o princípio de arkhé.
“Time is money,tempo é dinheiro,trabalho é dinheiro,vida é dinheiro.(...)Neste contexto,a temporalidade mecânica industrial,simbolizada pelo relógio se sacraliza e a temporalidade cósmica e sagrada das muitas lutas não tem mais espaços de existir.”(LUZ,1995:286)
O que estamos concebendo como uma ética impostergável para o futuro no contexto deste mito africano, apresenta-se como valores , linguagens,modos e formas de sociabilidade que contempla a transcendência do “. ancestral- esse pai que,mesmo morto,determina.O culto aos ancestrais responde pelo poder do pai morto.A ética,enquanto discurso da autoridade ancestral,é holística,comunitária,consubstanciando a força do grupo.” (SODRÉ,1992:11).
A ética do futuro dentro dessa dinâmica ancestral elabora e faz expandir a alteridade própria característica das condutas individuais e coletivas.
Esse princípio ético tem vigor nas formas tradicionais de sociabilidade africano-brasileira, onde o ato de educar é concebido como uma dinâmica capaz de fazer irradiar os mistérios transcendentes da vida e da morte.
Na tradição Nagô a educação consubstancia o “... poder de tornar presente a linguagem abstrato-conceitual e emocional elaborada desde as origens...Poder de tornar presentes os fatos passados,de restaurar e renovar a vida...Reconduzir e recriar todo o sistema cognitivo emocional,tanto em relação ao cosmos como em relação ‘a realidade humana.”(SANTOS,1997:4)
Não é exagero! Mas é urgente (re)afirmar que EDUCAR é repor os valores e princípios herdados e reelaborados- legado ancestral .É expansão socioexistencial da diversidade humana ,fruto de civilizações milenares que inauguraram esse território, e lutam há séculos, tenazmente para mantê-lo viável a vida.
Aqui e agora ;tradição e contemporaneidade;cosmos e natureza; comunalidade e ancestralidade ;continuidade e expansão- RELIGARE!
Referências Bibliográficas:
BARTHOLO, Roberto. Os Labirintos do Silêncio. São Paulo :Marco Zero, 1986
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro : Graal, 1986
LUZ, Marco Aurélio. Agadá : Dinâmica da Civilização-Africano.Brasileira. Salvador : Edufba / Secneb, 1995
__________________Arkhé et axexé lês Communeutés Afro-Brasilenses, Revue Societés,
Paris, nº 36 p. 179-184, 1992
LUZ, Narcimária C.P.Abebe: a Criação de Novos Valores na Educação. Salvador:
SECNEB,2000.
________.Awasojú:Dinâmica Existencial das Diversas Contemporaneidades in Revista da FAEEBA,Salvador nº12,ps 45-74.
MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum. São Paulo : Brasiliense, 1988
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