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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Seminário A TRADIÇÃO DOS ORIXÁ NO BRASIL


Conclusão dos participantes.

 

1- A tradição dos Orixá de origem nagô que se constitui num

dos aspectos significativos do processo civilizatório africano

se implantou no Brasil e nas Américas a partir do sec. XIX

e continua se expandindo enriquecendo a cultura do continente.

 

2- A tradição dos orixá se constitui num sistema de vida,

numa forma de ser que caracteriza a atuação dos integrantes

desta cultura em todas as escalas não se restringindo a uma

forma de percepção dicotomizada que a classifica apenas como

religião. A tradição dos orixá acompanha a vida, o orixá

está em nós, na natureza, no cosmos.

 

3- Os valores sagrados da tradição dos orixá são concretizados

nas culturas das comunidades terreiro organizadas de forma

hierarquizada, atualizadas através dos tempos, e que mantém

viva esta tradição e através de sua ação ritual que visa o

desenvolvimento do axé.

 

4- A tradição dos orixá possui um universo simbólico e mítico

próprios, que expressam profundos conhecimentos da natureza

acumulados há milhares de anos, e que realizadas no mundo

contemporâneo permitem cada vez mais uma revolução da existência,

e a expansão da vida.

 

5- O significado histórico e contemporâneo da tradição dos orixá

é sua dimensão anti-colonialista. O negro sempre teve consciência

do valor de seu sistema cultural, se assim não fosse, teria aderido

a religião oficial tantas foram e tantas são as catequeses.

O orixá estando em nós, para mantermo-nos vivos e expandir nosso axé,

temos inexoravelmente que cultiva-lo, para que a vida não se acabe.

 

6- A tradição dos orixá caracteriza-se nos valores culturais, capazes

de constituir a identidade negra em sua dimensão mais profunda, e de

apontar os caminhos para mais significativas mudanças, a libertação


quarta-feira, 15 de julho de 2020

Baiana Cida Otun Iya Egbe Axipá




Praça das Baianas, em Amaralina, Salvador, BA. Artista Bel Borba. Inspirada na baiana Cida de Nanã. 


                                                    Cida otun Iya Egbé Ilê Asipá.
                                                         Neta do Mestre Didi

Enquanto tentam retirar as estátuas dos colonialistas imperialistas racistas mundo afora na Bahia é erigido monumento em homenagem as baianas símbolo da identidade de nossa gente.





quinta-feira, 25 de junho de 2020

VIDAS NEGRAS IMPORTAM

Senado aprova Dandara dos Palmares e Luísa Mahin como 'heroínas da ...imagem disponível em noticiadabahia.com.br

                      
                                                           Por Armando Avena
Há exatamente 185 anos atrás, na cidade da Bahia, um fato causou grande constrangimento às autoridades. Uma sentença que condenava à morte por enforcamento em praça pública cinco homens negros não pode ser executada segundo determinava o processo, pois nenhum homem, branco ou negro, aceitou o papel de carrasco. Ninguém na cidade da Bahia aceitou ser o verdugo de uma sentença abjeta, ainda que fosse  oferecido a qualquer cidadão, mesmo preso ou condenado nas galés, uma polpuda recompensa de 30 mil-réis.
Os cinco homens tiveram sua sentença cumprida por fuzilamento, como homens dignos que eram, frustrando o espetáculo desonroso do enforcamento  em praça pública, cujo o objetivo era intimidar as luta dos negros pela liberdade.  A revolta não estava apenas com os negros, os que não aceitaram ser cumplices da carnífice  e muitos brancos que não admitiam ver heróis condenados a uma morte desonrosa, também se revoltaram. Os condenados haviam lutado na Revolta dos Malês e, guerreiros que eram, deveriam ter uma morte digna. 
Esses e outros fatos me surpreenderam quando me debrucei sobre os livros e documentos que contavam em detalhes a Revolta dos Malês para assim elaborar meu último romance, Luiza Mahin (Geracão 2019).  A revolta por si só já era surpreendente, afinal não parecia crível que quase mil homens negros vestidos com camisolões brancos e torso na cabeça e armados de facões, navalhas e parnaíbas tomassem a cidade de Salvador por um dia e enfrentassem durante horas os soldados fortemente armados que lhe deram combate cerrado, como se enfrentassem um exército organizado.
Surpreendente também era um certo traço ecumênico na revolta, que viabilizou a junção de negros mulçumanos com aqueles que professavam a religião dos Orixás para juntos formarem um exército cujo objetivo era a libertação dos escravos. Como se não bastasse – e sem falar na força da  personagem feminina que liderou a revolta, pelo menos no imaginário do povo – havia outro fato característico: os revoltosos, em sua maioria escravos tratados brutalmente pelos seus donos, tinham todos os motivos para, tomado os principais bairros da cidade, atacar os brancos indiscriminadamente.
E, no entanto, os civis, homens e mulheres brancos, não foram atacados, suas vidas foram preservadas, os revoltosos miravam apenas os seus algozes, a polícia e os batalhões que formavam o braço armado de uma classe dominante cujo único objetivo era sugar o trabalho e a vida dos escravos. Para os malês “white lives matter”.
Ambos os episódios históricos desaguam nas manifestações pela morte brutal de Goerge Floyd que colocou milhares de pessoas nas ruas da América e de vários países do mundo protestando contra a brutalidade da polícia e contra o racismo estrutural que ainda perdura no mundo. E desaguam porque chamou atenção que aqueles que protestavam contra o racismo e a desumanidade com que a polícia trata os afrodescendentes, não eram apenas negros, milhares de jovens brancos se uniram a eles, como que a dizer que não queriam cometer o pecado da omissão ou da conivência como fizeram as gerações que os precederam. 
Black Lives Matter é o lema de milhões de negros ao redor do mundo que sempre foram as ruas lutar contra o racismo estrutural enraizado na sociedade e mais enraizado ainda nas estruturas policiais, cuja violência contra os negros é inerente.  
Mas o brutal assassinato de George Floyd teve o condão de ampliar o movimento e foi como se um raio de consciência tivesse atingido todos os jovens fazendo-os ver que  Black Lives Matter é um movimento de negros e brancos e um imperativo do ser humano se se deseja criar uma sociedade verdadeiramente humanista.
A morte de George Floyd fez o mundo ver que o racismo não é um problema de negros é um problema de todos  e a sociedade branca que criou o criou tem responsabilidade na na reparação e na mudança desse quadro. E a carapuça serve para a sociedade branca brasileira, que sempre brandiu a mentira de que o Brasil era uma democracia racial  e  inoculou o germe do racismo em todas as estruturas republicanas, mas que se tornou simbólica na ação e na violência da polícia.
As gerações que formaram a República brasileira nunca enfrentaram de frente o racismo que está arraigado em nossas instituições e mesmo minha geração, a geração libertária de 1968, que foi às ruas em busca da libertação do homem, deixou a questão racial em segundo plano, assim com deixou a questão ambiental  de lado. Mas agora uma nova geração está nas ruas e ela está clamando pela preservação do meio-ambiente e denunciando o que estamos fazendo com o mundo que será deles.
E a morte de George Floyd, que levou  milhares de jovens, brancos e negros, às ruas no mundo inteiro,  é também um grito dessa geração, que nós supúnhamos alienada, mas que foi às ruas para denunciar a nossa  omissão, a nossa conivência com uma sociedade racista, cujo aparato policial e educacional existe para manter esse racismo estrutural. A morte de George Floyd serviu para mostrar que a luta contra o racismo e a opressão não é apenas a luta dos negros secularmente oprimidos, é a luta de negros e brancos em busca de uma sociedade mais justa e inclusiva.  
Armando Avena é escritor, jornalista e economista. Membro da Academia de Letras da Bahia e professor da UFBA. Seu livro, Luiza Mahin, foi publicado pela Geração Editorial em 2019 e está na 2ª edição.http://atarde.uol.com.br/

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

ORÁCULO O JOGO DO ANO


Opon Ifa
Imagem disponível na internet

Por Marco Aurélio Luz Elebogi

Com meu pai e Mestre Didi, Alapini Ipekun Oye, aprendi sobre a importância do jogo do ano.
Diante de algumas controvérsias que o assunto causava ele sustentou sua posição de sacerdote supremo de  preservar a tradição.
O oráculo revela o destino anual de uma comunidade terreiro ou ilê axé. Cada ilê axé possui seu destino, sua história seu contexto atual. Assim a consulta a Ifá ou ao  jogo de búzios ou erindinlogun, deve se referir a uma determinada comunidade.
Erindinlogun é composto de 16 búzios (ancestres) e mais 1, que refere-se a Exu quem dinamiza e fala pelo jogo.

Erindinlogun
Imagem disponível na Internet

Deve acontecer na exata passagem do ano, de 31 de dezembro para 1º de janeiro. Nessa passagem é que será revelado o Odu , o caminho do destino com o itan a história correspondente. Nessa história estão presentes as entidades e uma delas regerá o ano.
Juntamente com a revelação do Odu vem a determinação do ebó do ano, a oferenda de axé  que proporcionará a superação dos obstáculos e permitirá o bem estar dos que a realizarem.
Não se pode esquecer como ensinava  Mestre Didi que nós só temos essa vida e devemos vivê-la da melhor maneira possível.

                                             EKU ODUN OOOO!

domingo, 15 de dezembro de 2019

OWÔ DINHEIRO





Por Narcimária Luz


Para refletir sobre os aspectos que tratamos “self made man” e sua extensão o “homo industrialis” ,nada mais oportuno do que apelar para um conto mítico que se desdobra do universo existencial característico da ancestralidade e visão de mundo africano.Neles tradição e contemporaneidade se intercambiam,estruturando linguagens e valores do patrimônio simbólico desse continuum civilizatório.
Os contos míticos reúnem sabedorias milenares cujos princípios éticos conduzem , influenciam e atualizam o viver cotidiano das comunalidades de base africana. 
O conto que veremos a seguir é de Mestre Didi e absorve de modo extraordinário a pedagogia iniciática africana que estrutura a identidade das crianças e jovens das comunalidades africano-brasileira .
Nossos filhos costumam ser educados com os valores éticos transmitidos pelos contos e a partir deles aprendem a lidar com os valores da sociedade oficial caracterizadamente prometeica .
Há muitos anos passados, Oxalá teve um filho por nome Dinheiro, muito presunçoso e arrogante, a ponto de dizer a Oxalá, seu pai e rei, na presença de várias pessoas, que era tão poderoso quanto ele, pois era acostumado a andar com Morte e levá-la para qualquer lugar.
Para dar prova disto, um dia ele saiu pensando como poderia trazer presa de qualquer forma Morte, conforme tinha dito a Oxalá, na presença de todos do reinado.
Nisto, ocorreu-lhe a idéia de deitar-se em uma encruzilhada. Dito e feito, logo que encontrou uma, deitou-se nela, ficando quieto, aguardando o que poderia acontecer. As pessoas que passavam pela estrada e se deparavam com ele deitado ali na encruzilhada, diziam: - Chi ! como está aquele homem deitado ali, com a cabeça para a casa de Morte, os pés para a porta da Moléstia e os lados para o lugar da Desavença.
Depois de ditas estas palavras pelas pessoas que por ali passavam, e que ele se achou sozinho, levantou-se e disse ; - então “de ironia” já sei tudo o que era preciso saber e conhecer; estou com os meus planos feito. – E lá se foi ele direitinho para a casa de Morte.
Chegando na chácara dela, começou a bater nos tambores funestos de que Morte fazia uso, quando queria matar as pessoas indicadas.
Assim ele, que já estava de posse de uma rede que tinha conseguido no caminho, ficou preparado, aguardando que a morte viesse a ele para reclamar.
Dito e feito, Morte, ouvindo os sons dos tambores, chegou bastante apressada a fim de saber quem estava tocando.
Dinheiro envolveu-a na rede e levou-a ao maioral Oxalá, dizendo-lhe estas palavras :- Aqui está Morte que prometi trazer em pessoa à vossa presença.
Oxalá respondeu : - Vai-te embora com Morte e tudo de melhor que possa levar do mundo, pois tu és o causador de tudo de bem e de mal. Suma-se daqui! Leve-a e pode passar a conquistar todo o universo.
Por este motivo é que, por causa do dinheiro, todas as qualidades de crimes têm sido e continuam a ser praticadas.
Oxalá é o orixá que representa o ar e é o responsável pela criação dos seres humanos e das árvores.Está relacionado a cor branca,”(...) o axé, sangue branco... caracterizado por substâncias minerais como o giz, metais brancos, como prata e chumbo,pela seiva da palmeira igi-ope,pelo algodão,pelo sêmen ,pelos ossos e pela chuva.Pela chuva-sêmen que fertiliza e fecunda a terra regenerando-a e proporcionando o brotar das sementes.(...)Apresenta representações simbólicas de progenitura,capacidade de gerar filhos,de expandir a descendência,multiplicação dos seres tanto no aiyê como no orun.”(LUZ,1995:89_)



Oxalá possui poderes que garantem a existência e pela sua importância no panteão nagô ele merece respeito e atenção.Se for contrariado ou desrespeitado ele pode causar grandes danos tal o seu poder.
O dinheiro no mundo africano tem uma outra conotação e representação diferente do Ocidente.O “dinheiro” como modo de troca está ligado a fertilidade e a restituição. Nos antigos reinos Yorubá a moeda eram os búzios que tinham um valor inestimável, pois representam ancestralidade.
Os ornamentos de determinados orixá apresentam constelações de búzios, caracterizando expansão de linhagens sucessão de ancestralidade.
Na concepção de fertilidade está presente a idéia implícita de restituição de, morte.Assim, o poder da fertilidade e restituição andam juntas.
No conto o desafio do mais novo ao mais velho ,inclusive considerando o poder ancestral contido em Oxalá, é uma quebra de valores significativos da tradição e compromete a harmonia e coesão comunal.No conto o desafio do filho ao pai é motivado pelo grande poder de representação do Dinheiro ao qual nos referimos.
O poder do Ocidente é caracterizado pelo dinheiro e toda a onipotência que ele pode exprimir.”Na forma mercantil desenvolvida o dinheiro é o portador da síntese da sociedade.O dinheiro é o equivalente geral ‘as mercadorias,nele transcorre a unidade abstraída do mundo e se viabiliza a constituição inconsciente da sociedade,pois seu efeito sintético-social se impõe por sobre as consciências empíricas individuais.(...) O ato de troca mercantil pode ser descrito como um movimento que transcorre num tempo e num espaço contínuos e vazios, de natureza abstrata e a-histórica.(...)Nesta identificação a natureza é concebida como uma esfera dissociada da sociedade,da qual o ser humano, em tanto que sujeito seausenta.”(BARTHOLO,1986:52)
A arrogância ,o egoísmo,o poder de destruição , a desarmonia a denegação da morte as tentativas de obtenção de um poder absoluto denegando a ancestralidade o princípio de arkhé.




“Time is money,tempo é dinheiro,trabalho é dinheiro,vida é dinheiro.(...)Neste contexto,a temporalidade mecânica industrial,simbolizada pelo relógio se sacraliza e a temporalidade cósmica e sagrada das muitas lutas não tem mais espaços de existir.”(LUZ,1995:286)
O que estamos concebendo como uma ética impostergável para o futuro no contexto deste mito africano, apresenta-se como valores , linguagens,modos e formas de sociabilidade que contempla a transcendência do “. ancestral- esse pai que,mesmo morto,determina.O culto aos ancestrais responde pelo poder do pai morto.A ética,enquanto discurso da autoridade ancestral,é holística,comunitária,consubstanciando a força do grupo.” (SODRÉ,1992:11).
A ética do futuro dentro dessa dinâmica ancestral elabora e faz expandir a alteridade própria característica das condutas individuais e coletivas.
Esse princípio ético tem vigor nas formas tradicionais de sociabilidade africano-brasileira, onde o ato de educar é concebido como uma dinâmica capaz de fazer irradiar os mistérios transcendentes da vida e da morte.
Na tradição Nagô a educação consubstancia o “... poder de tornar presente a linguagem abstrato-conceitual e emocional elaborada desde as origens...Poder de tornar presentes os fatos passados,de restaurar e renovar a vida...Reconduzir e recriar todo o sistema cognitivo emocional,tanto em relação ao cosmos como em relação ‘a realidade humana.”(SANTOS,1997:4)
Não é exagero! Mas é urgente (re)afirmar que EDUCAR é repor os valores e princípios herdados e reelaborados- legado ancestral .É expansão socioexistencial da diversidade humana ,fruto de civilizações milenares que inauguraram esse território, e lutam há séculos, tenazmente para mantê-lo viável a vida. 
Aqui e agora ;tradição e contemporaneidade;cosmos e natureza; comunalidade e ancestralidade ;continuidade e expansão- RELIGARE!

Referências Bibliográficas:

BARTHOLO, Roberto. Os Labirintos do Silêncio. São Paulo :Marco Zero, 1986
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro : Graal, 1986
LUZ, Marco Aurélio. Agadá : Dinâmica da Civilização-Africano.Brasileira. Salvador : Edufba / Secneb, 1995
__________________Arkhé et axexé lês Communeutés Afro-Brasilenses, Revue Societés, 
Paris, nº 36 p. 179-184, 1992
LUZ, Narcimária C.P.Abebe: a Criação de Novos Valores na Educação. Salvador: 
SECNEB,2000.
________.Awasojú:Dinâmica Existencial das Diversas Contemporaneidades in Revista da FAEEBA,Salvador nº12,ps 45-74.
MAFFESOLI, Michel. O Conhecimento Comum. São Paulo : Brasiliense, 1988

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O CHÃO A RODA E O SAMBA ,CONTRIBUIÇÕES DE MUNIZ SODRÉ NO CAMPO DA DESCOLONIZAÇÃO E EDUCAÇÃO



Monumento Opo Baba Nla Wa de Mestre Didi em homenagem aos ancestres africanos.
Foto e acervo: M. A. Luz

Por Narcimária C.P.Luz[1]

Há um clamor das comunidades afrobrasileiras por políticas públicas na área de Educação que criem espaços institucionais capazes de combater o racismo suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida  de crianças e jovens,que experimentam  situações adversas no cotidiano escolar que causam muita dor e humilhação.
As nossas iniciativas  na área de Educação, procuram estabelecer canais de solidariedade com todas as crianças e jovens que não abrem mão do seu direito de ser, de pertencer as comunidades afrobrasileiras, viver seus ritos de iniciação e de passagem,característicos das instituições que contribuem para a expansão da ancestralidade afrobrasileira.
Nosso desafio:provocar os/as educadores/as fazendo-os/as  pensar  a identidade profunda de crianças e jovens descendentes de africanos/as no Brasil. Se somos educadores no Brasil,não podemos ter medo de pensar  e realizar iniciativas socioeducativas a partir do que somos como povo que tem  na dinâmica da sua constituição civilizações milenares das Américas e África.

Odé e os Orixá do Mato de Mestre Didi encenado  no Festival de Arte Integrada da Mini Comunidade Oba Biyi.
Foto e acervo: M. A. Luz
Temos que aprender a ter orgulho desse legado e respeitá-lo! Infelizmente nos deparamos  na nossa trajetória com a institucionalização de cursos para formação de professores/as que os afastam ,disciplina-os para esquecer, ter vergonha e até mesmo,  temer  os valores e linguagens que comunicam o patrimônio da civilização africana que também protagoniza a formação social,a nossa história.
O meu respeito e admiração pelo pensamento de  Muniz Sodré  atravessa o tempo e se mantêm, por reconhecer o seu legado no âmbito acadêmico,como  uma  (re)criação original que se caracteriza por   uma “epistemologia compreensiva”,  de onde brota horizontes de questionamentos, interrogações e proposições filosóficas sobre Educação.
Muniz abre perspectivas de abordagens em Educação importantes,nos encorajando a propor espaços institucionais que reconheçam e respeitem as comunalidades afrobrasileiras como mananciais socioeducativos  valiosos.
Nas comunalidades afrobrasileiras nossas crianças e jovens  aprendem, elaboram conhecimentos e expressam esses universos característicos do pensamento africano e suas atualizações nas Américas, através da vivência e convivência com orikis, contos, instrumentos percurssivos cujos toques falam/comunicam relatam histórias anunciando os primórdios da humanidade, indicando princípios ético-estéticos capazes de expandir  o corpo comunitário dando continuidade aos elos de ancestralidade que projetam e anunciam a ALEGRIA TRANSCENDENTE.
É acreditando nessa epistemologia compreensiva que atravessa todo o pensamento de Muniz, que ousamos a fazer a homenagem a ele através das  metáforas “O chão,a roda e o samba”. E nada melhor para começar a pisar o chão,entrar na roda como um samba cuja poesia conta um pouco desse baiano, Oba de Xangô, mandigueiro e intelectual Muniz Sodré.
“Foram me chamar
Eu estou aqui, o que é que há
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Sempre fui obediente
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que juntei-me aos bambas
Pra me distrair
Quando eu voltar na Bahia
Terei muito que contar
Ó padrinho não se zangue
Que eu nasci no samba

E não posso parar
Foram me chamar”
(D. Ivone lara)

 “O chão,a roda e o samba” são metáforas,forças semânticas,três anúncios,três dinâmicas de linguagens e valores que constituem o patrimônio africano-brasileiro.Estamos nos referindo a linguagens e valores de suma importância na promoção de uma educação capaz de promover o direito à alteridade civilizatória  de crianças,jovens e adultos que vivem a pulsão de sociabilidade das nossas comunalidades afrobrasileiras.
Aqui está o  legado singular do pensamento de Muniz Sodré!
Singular aqui,na dinâmica de linguagens e valores que irrigam  o chão,a roda e o samba é como o próprio Muniz nos ensina “... a ordem do incomparável, do único, é aquela experiência original que está ali. O singular é você reconhecer o real tal qual ele se apresenta, com todas as suas características. Você vê, reconhece não se pergunta pela essência dele, não precisa de adjetivos.” [2]


Samba de Roda das Ganhadeiras de Itapoan.
Imagem disponível na internet
Na pulsão de vida que transborda no pisar o chão,entrar na  roda e vivenciar a polirritmia do samba,aprendemos de modo muito especial com Muniz, a rasurar e transcender  os discursos etnocêntricos e racistas que atravessam o pensamento  sobre Educação no Brasil.E mais que isso!É a recusa ao monopólio da fala e suas extensões panópticas e  simulacros;é também o exercício de  pensar e erguer espaços socioeducativos  que têm a síncopa como um caminho importante para a afirmação do direito à  alteridade civilizatória africano-brasileira;e sobretudo assumir a radicalidade da  alegria (uma das mais importantes categorias filosóficas nacionais no dizer do próprio Muniz).
É  dessa  ligação profunda  com  sua territorialidade,seu solo de origem que Muniz nos aproxima   do “O chão,a roda e o samba” representam   infinitas linguagens e  vivências acumuladas  por um bom capoeira, discípulo de Mestre Bimba, que logo cedo percebeu que Muniz tinha  talento e “ginga” para lidar com as  línguas estrangeiras dando-lhe  o nome de “Americano”.

Mestre Bimba criador da Capoeira Regional e da Academia de Capoeira.
imagem disponível na internet
É gingando nos interstícios e fissuras  da Razão de Estado, superando as tensões e conflitos característicos da panacéia  e utopias urbano-industriais, que Muniz realiza uma travessia empírico-reflexiva fascinante,que intercambia o clássico pensamento grego, ao universo simbólico próprio da cosmovisão afrobrasileira e as tensões e conflitos entre essas civilizações.Essa travessia ou “manha”,como quer o vocabulário da capoeira,é que irá  imprimir um pensamento filosófico singular,aplicado à Comunicação, e que aqui ouso afirmar também, na área de Educação.
Sim!Educação!Mas refiro-me àquela perspectiva de Educação que se apropria do repertório da dinâmica do “O chão,a roda e o samba”  visceral nas obras de Muniz e que ele nos estimula a transformá-la numa:
 (...)ágora, não a grega, mas uma ágora negra, uma cidadela, uma organização social com regras próprias, algo que tornou (...) a Bahia uma coisa singular. Os estudos sobre o negro no Brasil são mais repetição do método acadêmico do que pensamento. O que me interessa, (...) é a possibilidade de ver um pensamento original, uma filosofia que inclui o corpo, que não é só conceitual. Mas o que é a filosofia no Brasil. Certo, eu também estudo Heidegger, Hegel, Platão, adoro esses caras, mas acho que se você ler realmente os grandes filósofos, independente da academia, você constata que eles estavam preocupados com a cidade deles, digamos assim. Acho que você só pensa originalmente quando o faz radicalmente, a partir de suas raízes, o que a academia no Brasil não ousa fazer.” (SODRÉ,2001,P,.10)
Uma séria constatação: na Bahia territorialidade imantada pela alteridade civilizatória afrobrasileira,por exemplo, vivemos um grande dilema, pois a Universidade não conseguiu fundar nem gregos nem baianos, como diz Gilberto Gil na música Tempo Rei.


Pedra Sagrada de Xangô em Cajazeiras Ba.
Imagem disponível na internet
Essa  Bahia, onde a presença da civilização africana é pujante caracterizando a sua polis, há uma tendência a acolher cursos de formação de educadores vinculados exclusivamente aos valores civilizatórios  greco-romanos, anglo-saxão,ibérico. A opção institucional por essas arkhés alheias à nossa existência vem produzindo ao longo dos séculos políticas educacionais que procuram recalcar os contínuos civilizatórios que caracterizam povos milenares. O resultado dessas políticas educacionais destituídas dos valores característicos da nossa população é a incapacidade de produzir conhecimentos significativos sobre as nossas territorialidades afrobrasileiras, e dela, extrair perspectivas que aproximem os educadores das dinâmicas de sociabilidades pluriculturais.
Essas considerações pontuam aspectos que designam a dinâmica e tensões entre territorialidades radicalmente distintas, a saber: a colonial europocêntrica representada pela metáfora da “casa grande e senzala”; e a africana influenciando e instituindo kilombos e legitimando a floresta simbólica expansão de civilizações milenares...
Bem. Ao longo dos anos vivi muitas inquietações  e angústias como educadora,é muito especial para nós, a abordagem que encontramos no pensamento de Muniz aplacando essas inquietações e angústias.Escutem mais essa reflexão do nosso homenageado: [...] Os neo-alexandrinos tinham uma categoria chamada ‘eon’, que é uma das maneiras de dizer tempo em grego. O ‘eon’ é o tempo que recorre. Então, há alguma coisa na Bahia que é a ordem do ‘éon’, ‘trans-histórico’, transtemporal. Onde há ‘éon’ tem-se o princípio forte de ancestralidade, de paternidade, e não de história pura. A história, principalmente a história como Hegel e Marx viram, é dinâmica, é uma mutação sem compromisso com o pai, porque o ocidente é uma sociedade deicida e parricida, matou Deus e mata o pai. Bem, eu estou falando com outra linguagem, do Egun, que é o culto ao ancestral. Portanto, o princípio da ancestralidade é poderoso, porque nele você pode crescer, envelhecer, morrer, e o tempo inteiro você é atravessado por um discurso de fundação de seu pai e sua mãe. Você não se livra desse discurso. Você pode tentar rejeitá-lo, mas quando joga fora é para cair num outro que você funda, porque você se livra de seu pai físico, mas quando tem um filho vira o pai e você está no discurso de
fundação...”
Miguel Sant`Anna Ojé Orepe, Mestre Didi Alapini Ipekun Oye, Arsênio dos Santos Alaba Olukotun
Insígnes personalidades da história do Ilê Asipa.
Imagem acervo Galeria do Ile Asipa
Em  todas as suas obras   Muniz vai nos lembrando dos  ciclos do tempo,  que marcam a ontológica diversidade humana e neles as utopias da modernidade e a sua pretensa idéia de controlar o destinos,a vida e a morte.
“A origem quanto o destino foram afastados da visão moderna; a primeira foi reduzida a datas históricas, o outro a um plano econômico. A ritualização desapareceu. Continuamente nos preocupamos com a nossa origem e com o nosso destino, só que esta preocupação permaneceu a nível individual. Isto explica a força da psicanálise a partir do século XIX.  A psicanálise não fala de outra coisa senão disto. Assim, tudo o que se refere à origem e ao destino entrou para os subterrâneos da racionalidade... O mistério é aquilo que se silencia : O Ocidente deve calar-se a respeito do mistério da origem e do destino porque a racionalidade histórica não lhe permite que fale a respeito...”[3]
Insistindo com vocês a pensar o título desse mosaico”o chão,a roda e o samba”.
O CHÃO é ARKHÉ,princípio,origem,devir... Vínculos de sociabilidades de tempos imemoriais,ou no dizer dos nossos/as mais velhos/as quando nos apresentam os itans: “no tempo em que a humanidade morava nas árvores e conversavam com elas”...
Nas obras de Muniz Sodré, a ARKHÉ se refere às ritualizações da origem, do destino, morte e renascimento. Há também que se considerar arkhé como o conhecimento da origem que comunicam as elaborações da comunidade sobre os modos de pensar, valores e linguagens, saberes simbólicos. Muniz destaca que a palavra arkhé vem do grego “syn-ballein”, que se refere a “lançar junto com”, e esse movimento de lançar é carregado de símbolos que atravessam gerações e vão compondo histórias, narrativas de origem e começo, o universo simbólico que caracteriza o grupo, a comunidade, as comunalidades.
É aí que operamos com a noção de arkhé, para identificarmos em qual sistema de civilização se localizam instituições, sociabilidades, valores, identidades, modos de produção, etc.
A noção de arkhé engloba o princípio de ancestralidade que se caracteriza pelas bases fundadoras e inaugurais das civilizações e suas dinâmicas sucessórias, os contínuos.
E por falar em ancestralidade cabe ainda ressaltar que há um grande equívoco pensar ancestralidade apenas como uma carga genética! Ancestralidade não é uma sucessão genética.
A ancestralidade se caracteriza por representar as lideranças comunitárias que se dedicaram em vida ao bem estar da família, linhagem, comunalidade através da manutenção e preservação dos valores e linguagens que sustentam o bem estar e destino individual e coletivo.

Mãe Aninha Iyalorixá Oba Biyi fundadora do Ilê Ase Opo Afonjá líder sacerdotal da comunalidade nagô.
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Ancestral é, portanto aquele ou aquela que em vida deu continuidade e garantiu a expansão da memória da sua comunalidade. Os ancestrais são lembrados e consagrados para depois em outro plano de existência continuar protegendo a existência e promovendo a alegria de sua gente. Enfim,é aquele que dedicou sua vida para garantir a continuidade da tradição.
A ARKHÉ organiza e dá pulsão a RODA, que dá origem a  linguagem própria das culturas de participação, caracterizando   territorialidades que promovem formas e modos de comunicação tornando  possível  um corpo livre em permanente movimento de transcendência, e mais do que isso,capaz de realizar e expandir o modo próprio africano de existir e manter a sua identidade profunda individual e coletiva.
A RODA irriga a síncopa do SAMBA,que apela para todos os sentidos do corpo (tato,audição,visão,paladar,olfato)  carregando o jogo,a brincadeira,a dança,a dramatização,a poesia,a polirritimia...Enfim,formas de comunicação que incitam a participação direta, interdinâmica, pessoal ou intergrupal, a recriação de  uma   outra ordem de valores civilizatórios para além do europeu.
Como afirma Muniz:”(...)Cantar,dançar,entrar no ritmo,é como ouvir os batimentos do próprio  coração ,é sentir a vida sem deixar de nela reinscrever simbolicamente a morte...O ritmo negro é uma síntese(sonora) que atesta a integração do elemento humano na temporalidade mítica.Todo som que o indivíduo humano emite reafirma a sua condição de ser singular,todo ritmo a que ele adere leva-o a reviver um saber coletivo sobre o tempo ,onde não há lugar para a angústia,pois o que advém é a alegria transbordante da atividade,do movimento induzido.”(p 24)
As instituições afrobrasileiras as quais nos referimos,estão envoltas a dinâmica do chão,da roda e do samba,dinâmicas que marcam o alvorecer da humanidade, permitindo  presentificar acontecimentos míticos, aproximar-se de tempos imemoriais, das descrições de experiências vividas pelos/as ancestrais, da relação dialética entre vida e morte, rememorar e reverenciar famílias, linhagens, personalidades exponenciais que contribuíram para expandir e fortalecer as instituições , remeter a lugares sagrados, alianças e conflitos, dramatizações que contam a história de afirmação das nossas comunalidades.
Estamos diante de um universo comunicacional,característico das comunalidades tradicionais vinculadas a arkhé ,a ancestralidade ,tudo é  singular, pois está embebido de mistério,do sagrado,da imponderabilidade que envolve vida e morte, o infinito que no aqui e agora se descortina de modo intermitente.
É nesse solo de origem eminentemente africano-brasileiro ,prenhe de sabedoria,afeto e alegria que o Oba Aresá, nos aproxima da elegância de  textos, que abrigam categorias de análises e composições temáticas singulares.
E o que é a roda que singra o chão e cria movimentos sincopados para o existir?
Quem responde é Santugri!
 “Não é nada,não é nada, a roda.Se o vazio ou o traço?Bom,do vazio Deus fez este mundão todo.Não é nada o traço? Mas a criatura só existe quando deixa marca,traça.Para mim,o traço,o vazio,a roda é tudo.Não é nada,não é nada,é tudo.Gosto, moço.Nela meu corpo é meu-parece que nele nem corre sangue,corre mel.Meu corpo,meu corpo/foi Deus quem me deu/na roda da capoeira/Rarrá!/grande e pequeno sou eu.Meu nome é Santugri,moço.Posso dizer que o nome está ligado a meu segredo.Muito mais não posso contar,nem se quissesse,porque eu mesmo não sei.Mas posso dizer,isto sim, que este meu nome foi causa de mudança.
Foi minha sorte moço,pois o som dessa palavra casava fácil com meu corpo,repercutia bem na roda.Santugri(...) faz parte de mim,queira ou não.Passarinho não canta por gosto,canta por obrigação.Eu jogo capoeira por cerimônia,por destino.É minha sina,minha sorte.Morrendo,moço,não quero ir pra lugar nenhum-a roda é meu paraíso.”[4]

Roda de capoeira, Grupo Abolição no ACRA Associação Crianças Raízes do Abaeté.
Acervo M.A. Luz
É no universo  ético-estético  da síncopa da  roda,que transborda a regência da alegria, princípio seminal da arkhé afrobrasileira que irá singularizar o legado de Muniz Sodré para a minha geração e as gerações de educadores/as com as quais tenho tido o prazer de conviver.

Mo du pé Oba Aresá!
Obrigada Muniz!

A DINÂMICA DO JOGO

As estratégias de descolonização caracterizam fundamentos profundos de jogos e vão  ser interpretadas como uma arte que envolve astúcia, criatividade, improvisos, sensibilidade, afeto, mas também   um planejamento ardiloso do início ao fim da ação, sem se tornar refém dos detalhes(tática) que o cercam, como bem observa o autor.
 Então,a dinâmica discursiva que estrutura o jogo da comunicação não se reduz a “racionalidade lingüística” nem tão pouco as “lógicas argumentativas da comunicação”, mas a radicalidade das “estratégias sensíveis”, que apelam para a infinitude de combinações de linguagens que agem”...afetivamente em comunhão, sem medida racional, mas com abertura criativa com o outro, estratégia é o modo de decisão de uma singularidade. Muito antes de se inscrever numa teoria a dimensão do sensível implica uma estratégia de aproximação das diferenças-decorrente de um ajustamento afetivo, somático, entre partes diferentes num processo, fadada à constituição de um saber que, mesmo sendo inteligível, nada deve à racionalidade crítico-instrumental do conceito ou às figurações abstratas do pensamento.”(p.10)
É certamente difícil para nós, acostumados a Razão universal que funda a História e Geografia civilizatória do ocidente, acolhermos referências comunicacionais que transcendam as fronteiras entre logos/Razão  pathos/paixão. Na verdade essas fronteiras constituem dicotomias que institucionalizaram campos semânticos perversos, a exemplo das classificações que sobredeterminaram o destino de muitos povos considerados “pagãos”,”primitivos”,”selvagens”,”não humanos”... “Nessa dicotomia,a dimensão sensível é sistematicamente isolada para dar lugar à pura lógica calculante e à total dependência do conhecimento frente ao capital”(p.12)

Projeção futurística de cidade tecnológica
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Exemplos como esse talvez nos levem a pensar numa nova “Cidade humana” como se refere Muniz, que identifica no âmbito de novas tecnologias do social, modos de sociabilidade envolvendo os planos intelectual, territoriais e afetivos que rompem com a oposição logos pathos.
Ora, há infindáveis horizontes de tecnologias envolvendo informação, comunicação, imagem que transgridem o acervo clássico do conhecimento institucionalizado pelo poder de Estado,estabelecendo de modo radical outra possibilidade cognitiva. Mas como isso é possível?
Vejamos então como esses horizontes de tecnologias soam para Muniz:”... A afetação radical da experiência pela tecnologia faz-nos viver plenamente além da era em que prevalecia o pensamento conceitual, dedutivo e sequencial, sem que ainda tenhamos conseguido elaborar uma práxis(conceito e prática) coerente com esse espírito do tempo marcado pela imagem e pelo sensível,em que emergem novas configurações humanas da força produtiva e novas possibilidades de organização dos meios de produção.”(p.12)
 Muniz alerta sobre a aproximação progressiva entre a vida e a tecnologia. Na base desse universo comunicacional está anunciado uma bios-virtual, isto é, uma vida virtual que impõe “outra cultura”,alicerçada na globalidade tecnoeconômica, que através da dimensão da imagem,do afeto e do sensível, produz sujeitos de mercado adaptáveis à formação do “capital humano”.

O UNIVERSO IMANENTE:O BIOS-MIDIÁTICO.

A perspectiva que nos intriga na ambiência comunicacional : a bios-virtual condensa o espaço-tempo à técnica  que estrutura a vida social submetida a territórios imateriais, simulacros da existência em sintonia com o mercado o novo capital. O impacto é a institucionalização de uma: “comunidade afetiva de caráter técnico e mercadológico, onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social.”(p.99)
As sociedades contemporâneas sobredeterminadas pelo bios-midiático e a efervescência dos seus territórios imateriais desdobramento das tecnologias da informação, recebem os sopros de um universo comunicacional stricto sensu “indicial”.
Sobre ele há superposições de índices, signos,(imagem), dígitos, símbolos(sistema lingüísticos) relacionados a formas de transmissão de saberes e informações que caracterizam uma nova interação humana com o mundo ou os mundos que se apresentam.
O desafio, ou a grande questão que se impõe a essas formas culturais vinculadas a “circulação indicial” como quer Muniz,é que “...o índice configura-se como o signo mais adequado a um novo tipo de relação social carente de dimensões de profundidade semântica ou de valores éticos ordenados, em que predomina, no lugar da clássica’interioridade’ psíquica ou do sujeito definido por um ponto de vista estratégico, a pura contiguidade relacional das redes midiáticas ou cibernéticas”.(p.109)
Como recurso metodológico o autor apresenta dois mitos fundadores da civilização ocidental para que entendamos a  nova linguagem comunicacional contemporânea,onde o sentido da visão continua em cena,mas a tatilidade assume importância.Ambas intercambiam-se introduzindo um novo campo de sensibilidade. 
Narciso filho do Deus Cefiso e da ninfa Liríope recebeu a advertência do advinho Tirésias, que viveria melhor se não se olhasse. Quando tornou-se adulto Narciso ficou belíssimo, o que atrai a atenção e desejo de muitas moças e ninfas. Mas Narciso mantém-se sempre insensível ao amor, o que provoca a ira das mulheres que pedem vingança a Nêmeses.  Um dia Narciso inclina-se numa fonte para beber água, e vendo o seu rosto refletido fica enamorado. Desse dia em diante ele passa a ficar indiferente ao mundo e constantemente passa a admirar a sua própria imagem até morrer.

Narciso e a sedução da própria imagem
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O mito de Narciso mostra o quanto ele é indiferente à sociabilidade, à troca com o outro, à doação recíproca. Ele não aceita o outro corpo o corpo da ninfa, e entrega-se à troca com sua própria imagem, e é punido por denegar a presença do outro e ter uma atração absoluta por si próprio. Narciso mata a verdade de si mesmo e morre em sua própria imagem.
Muniz chama atenção no mito que”...a deriva descontrolada das imagens leva à morte do humano, identificado com a mediação simbólica”(p.111)
Aqui o mito de Édipo, também nos faz refletir, isto porque, demonstra o quanto à onipotência da bios-midiátrica lineariza, estabelece taxionomias, simulacros, que satura todos os espaços que cria A história de Édipo é interessante, pois marca:

[...] o poder do Ocidente exatamente porque expõe a pretensão de um olhar universal. Édipo-Rei é uma tragédia da visão-ele pode ver tudo, mas não se vê. Ao cegar-se, no final, interiorizando a sua visão, ele ainda está na pretensão de tudo ver, mesmo na escuridão. É essa onipotência edipiana que estrutura o mundo Ocidental que arma o olho funcionalizando-o em termos eficazes, de todos os recursos possíveis, para se investir da veleidade de um poder de visão universal.[5]

Édipo decifra o enigma da esfinge. O poder e a onipotência do saber.

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Portanto,a cegueira é capaz de desenvolver outras sensibilidades que promovem experiências de aprendizagens especiais pois se “vê mais” através das sensações táteis, olfativas, auditivas e gestuais, todas intercambiáveis que (re)orientando de modo radical as práticas sociais.
Daí emergir”...a sensorialidade  do indivíduo, capturada pelas exigências técnicas do controle cibernético,para que aprenda índices(setas,figuras,palavras)necessários à construção de uma espécie de cartografia de trânsito(ou ‘navegação’) na rede...Tateia-se nos intinerários sonoros,visuais e textuais em busca dos ídices de conexão ou elos(links).McLuhan tinha plena razão,não fez mero jogo de palavras,quando se referiu a ‘massagem’,e não a mensagem,como efeito característico da mídia eletrônica”.(p.115)
E mais:”...No hipertexto ou hipermídia, onde se hibridizam recursos diferenciados como arquivos sonoros, textos, videoclipes, fotos, etc., o usuário trafega em complexos ambientes dinâmicos,espreitado pela possibilidade estésica e manifestadamente narcísica da vertigem,como bem assinala Machado;’o navegante’ está sempre a um passo da vertigem, permanentemente arriscado a se perder no mar de textos’”.(p.115)
 Eis,então a proposição do autor de uma epistemologia compreensiva,que sai da ordem do discurso linear-sequencial e irrompe uma análise comunicacional à deriva do repertório de informação que inauguram “novos cenários urbanos de comunicação”,ao qual chama de “sensorium novo” potencialmente vinculado aos modos de sociabilidade que envolvem os jovens que vivem os valores do mercado transnacional contemporâneo.
Neste panorama faz sentido a importância da epistemologia compreensiva para a Comunicação,principalmente considerando que as “...as tradicionais ciências sociais e humanas sempre procuraram inscrever positivamente o fato(social,histórico,individual)numa ordem de causalidade capaz de levar a uma apreensão objetiva da realidade por meio da interpretação adequada.O desafio epistemológico e metodológico da Comunicação enquanto práxis social,entretanto,é suscitar uma compreensão,isto é, um conhecimento e ao mesmo tempo uma aplicação do que se conhece,na medida em que os sujeitos implicados no discurso orientam-se ,nas situações concretas da vida,pelo sentido comunicativo obtido”(p.15)
Ao sabor dessa epistemologia compreensiva, o autor nos aproxima de insondáveis perspectivas que envolve por exemplo: os  ciclos do tempo,  que marcam a ontológica diversidade humana, e neles, as utopias da modernidade e sua a pretensa idéia de controlar os destinos,a vida e a morte; a análise no interior das novas tecnologias que representam as dinâmicas de sociabilidade contemporâneas,e no interior delas a  predominância da dimensão do afeto e do sensorialismo.
Outro aspecto relevante no livro é o esmaecimento da Razão técnico-instrumental característica da pensamento clássico do Ocidente face a emergência intermitente da estética e da imagem (código fundamental das redes midiáticas) na  constituição do bios-midiático.
Muniz alerta sobre a aproximação progressiva entre a vida e a tecnologia. Na base desse universo comunicacional está anunciado uma bios-virtual,isto é, uma vida virtual que impõe “outra cultura”, alicerçada na globalidade tecnoeconômica, que através da dimensão da imagem, do afeto e do sensível, produz sujeitos de mercado adaptáveis à formação do “capital humano”.
O mais intrigante :a bios-virtual condensa o espaço-tempo à técnica  que estrutura a vida social submetida a territórios imateriais, simulacros da existência em sintonia com o mercado o novo capital.O impacto é a institucionalização de uma: “comunidade afetiva de caráter técnico e mercadológico,onde impulsos digitais e imagens se convertem em prática social.”(p.99)
Uma valiosa abordagem também acontece sobre política como expressão  do poder de Estado, que durante muito tempo foi o eixo central da vida social(final do século XIX e primeiras décadas do século XX) hoje saturada,mais insiste em existir através do apelo  a estética produzida pelo bios-virtual do marketing e da mídia responsáveis por produzir a “democracia cosmética” que sustenta o regime das aparências.



[1] Palestra proferida na Universidade Federal do Rio de Janeiro na ocasião da homenagem a Muniz Sodré pela passagem dos seus 70 anos.
[2] SODRÉ, Muniz. Entrevista a Mariluce Moura, Caderno Valor, 4 de março de 2001, p.10
[3]SODRÉ,Muniz.O Solo de Origem in LUZ,Narcimária(ORG.)Pluralidade Cultural e Educação.Salvador:Secretaria da Educação do Estado da Bahia e Edições SECNEB.p.18-27.
[4] SODRÉ,Muniz.Santugri.Rio de Janeiro:José Olympio,1988.p.15
[5] SODRÉ, Muniz.A Máquina de Narciso.Petrópolis:Vozes,1984, p.17