Conchas aflorando na areia da praia representando nossa ancestralidade afrobrasileira ,expansão de famílias,linhagens comunidades projeções transatlânticas Foto disponível em http://www.oartesanato.com/83/divertido-mobile-com-conchas-do-mar
Quem tiver ocasião de ler o importante livro de Neusa Santos Souza, Tornar-se Negro, nos agradecimentos mereço o registro de meu nome juntamente com outras amizades da autora. Foi nessa época do ano no mês de dezembro em 2008 que ela se despediu deixando a todos os seus amigos e admiradores surpresos e com enorme saudade. Só agora com a poeira de emoções mais assentadas que venho a público dar o meu testemunho de nosso surpreendente encontro, coisas do destino...
Lá pelos fins da década de 70, fui convidado por meu amigo Chaim, hoje psicanalista, a substituí-lo numa palestra nas cercanias do Hospital Pinel no Rio de Janeiro para falar sobre aspectos da obra de Michel Foucault especialmente o livro Doença Mental e Psicologia recém lançado no Brasil pelo Tempo Brasileiro. Naquela época já era conhecido naquela ambiência por minhas participações de análise institucional com Georges Lapassade inclusive pela co-autoria num livro sobre Umbanda e ainda um filme curta metragem com os então estudantes Roberto Moura e Murilo Salles. Para tanto freqüentamos os terreiros no morro D. Marta, na Rocinha e fazíamos comparações com os “centros” do “asfalto”. Porém naquela ocasião do encontro com Neusa, já freqüentava terreiros de culto aos egungun e aos orixá na Bahia e no Rio de Janeiro.
Já era conhecido também num movimento negro nascente onde acontece minha participação nas Semanas Afro Brasileiras no MAM RJ em1974, com atividades em torno do acervo de arte sacra negra de Mestre Didi que encerrava o ciclo de um périplo por países da África, Europa e América do Sul e que contribuíram para ampliar a atuação do CEAA e com a fundação do IPCN no RJ dentre outros desdobramentos.
Rio Paraguaçú cidade de São Félix vista da cidade de Cachoeira no Recôncavo da Bahia Imagem disponível emhttp://www.ufrb.edu.br/galeriareconcavo/2009/07/09/sao-felix-e-o-seu-espelho/
Enfim quando encerrei aquela palestra, Neusa se aproximou e se apresentou falando de seu trabalho sobre identidade negra e se eu poderia trocar umas idéias com ela da área de psiquiatria e eu de comunicação, sei lá. Coloquei-me a disposição e perguntei onde ela morava, foi então que começaram as coincidências. Nós morávamos no mesmo prédio com alguns andares de diferença e não sabíamos. Então combinamos de nos encontrar num dia em casa.
No nosso encontro, inicialmente cheio de cordialidades, ela disse ser baiana de Cachoeira, cidade de pujantes tradições culturais afro-brasileiras. Aí eu me senti mais a vontade prá puxar a conversa prá esse lado falando de identidade articulada e formada pelos valores e pelas linguagens das tradições, o rico legado civilizatório ancestral.
Cristo Redentor na cidade do Rio de Janeiro disponível em http://www.destinosdeviagem.com/cristo-redentor-rio-janeiro/
Então Neusa me conta que, no entanto a família dela manteve-se relativamente afastada dessa tradição. Ainda mais ela que foi para estudar, e depois se mudando de cidade, agora no Rio de Janeiro.
Entre o morro e o asfalto foto disponível em http://dan-poucodetudo.blogspot.com/2010/08/rio-de-janeiro.html
Enfim outras passagens há para contar, mas prefiro dizer que seu livro Tornar-se Negro marca uma reflexão das mais importantes sobre a trajetória da afirmação dos afro-descendentes no contexto nacional.
Livro "Tornar-se Negro" Rio de Janeiro:GRAAL,2º edição,1990.
O livro fala daqueles que trilham o “caminho do branco” e vivenciam o que Eldridge Cleaver chamou de “Alma no Exílio”.
Diz Neusa na introdução sobre seu livro: “Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro numa sociedade branca. De classe e ideologias dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Este olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica na decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos.”
E ela acrescenta: “O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de “tornar-se gente”.
E ainda: “Este livro trata desse contingente de negros, no que diz respeito ao custo emocional da sujeição, negação e massacre de sua identidade original, de sua identidade histórico-existencial.”
A originalidade de seu trabalho foi de ter compartilhado a problemática das tentativas de articulação do materialismo histórico com a psicanálise aplicada à trama afetiva dos comportamentos sociais relativos à especificidade da trajetória de mobilidade social do “segmento negro” no Rio de Janeiro.
A articulação da Teoria das Ideologias (Althusser) com a Psicanálise (Lacan) possibilita uma leitura profunda dos depoimentos de experiências de vida de mulheres e homens negros que vivenciam a introjeção do preconceito gerado pelo imaginário ideológico racista que sobredetermina o interelacionamento social nesse contexto.
No que se refere então a esse contexto histórico o ponto de partida é a ideologia do racismo institucional em que a razão de Estado através dos aparelhos ideológicos promove a rejeição da identidade original dos afro descendentes baseada na cultura, instituições, valores e linguagem que constituem o processo civilizatório afrobrasileiro. Esse processo não navega em águas tranqüilas mas enfrenta e caminha em meio às políticas neo-colonialistas da herança européia. No que se refere à Psicanálise acontece na interpretação dos depoimentos, muita vez, a constituição do Ego Ideal em detrimento do Ideal de Ego. O Eu imaginário e inalcançável do “padrão branco”toma lugar do Eu simbólico, das linguagens e valores da ancestralidade afro-brasileira.
“O Ideal de Ego não se confunde com o Ego Ideal.
O Ego Ideal, instância regida pelo signo da onipotência e marcada pelo registro imaginário, caracteriza-se pela idealização maciça e pelo predomínio das representações fantasmáticas. O Ideal do Ego é do domínio do simbólico. Simbólico quer dizer articulação e vínculo. Simbólico é o registro ao qual pertencem a Ordem Simbólica e a Lei que fundamenta esta ordem. O Ideal do Ego é portanto, a instância que estrutura o sujeito psíquico, vinculando-o a Lei e a Ordem. É o lugar do discurso.”
No caminhar pelas instituições do “mundo branco” o Super Ego atua introjetando o racismo, promovendo a rejeição da identidade original e plausível, ou seja, a identificação com seu contínuo civilizatório próprio e seus ancestrais ilustres no decorrer da história para substituí-la pelo Ego Ideal do fascínio da identidade e imagem do branco alimentado muitas vezes pelo núcleo familiar, pela indústria cultural, pelo sistema de ensino, pelas igrejas e demais aparelhos de Estado neocolonial republicano.
É a trama pulsante e pungente entre o Ideal de Ego, o Super Ego e o Ego Ideal que constitui o âmago do trabalho de Neusa, incrementado pelos comoventes relatos e depoimentos.
O valor especial do trabalho é que ele revela que as relações sociais estão envolvidas por emoção e afeto e que podem concorrer para corroer a possibilidade de afirmação de identidade plena.
“Esta ferida narcísica e os modos de lidar com ela constituem a psicopatologia do negro brasileiro em ascensão social e tem como dado nuclear uma relação de tensão contínua entre Super Ego atual e Ideal de Ego.”
E ainda: “A possibilidade de construir uma identidade negra - tarefa eminentemente política – exige como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras primeiras -pais ou substitutos- que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco. Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições que lhe permitirão ter um rosto próprio”.
Neusa formou-se em Medicina e se tornou psicanalista de orientação lacaniana.Foi uma escritora de textos que a tornaram clássica, como o artigo a seguir a propósito das comemorações em torno dos 120 anos de abolição da escravatura no Brasil.
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CONTRA O RACISMO
COM MUITO ORGULHO E AMOR
Neusa Santos Souza
Comemoramos hoje 120 anos de abolição da escravatura negra no Brasil. Abolição da escravidão quer dizer aqui fim de um sistema cruel e injusto que trata os negros como coisa, objeto de compra e venda, negócio lucrativo para servir à ambição sem fim dos poderosos. Abolição da escravatura quer dizer aqui fim da humilhação, do desrespeito, da injustiça.
Abolição da escravatura quer dizer libertação. Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?
Cento e vinte anos de abolição quer dizer 120 de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia, convivem com o preconceito e a discriminação racial. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra o racismo desse país que é nosso e que ajudamos a construir: não só com o trabalho, mas, sobretudo, com a cultura transmitida por nossos ancestrais e transformada e enriquecida por cada um de nós. 120 de abolição quer dizer 120 anos de luta contra todos os setores da sociedade e da vida cotidiana: nos espaços públicos e nos espaços privados; na Câmara, no Senado, nos sindicatos, no local de trabalho, nas escolas, nas universidades no campo, na praça e em nossas casas. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra qualquer lugar em que houver um negro que ainda sofra preconceito e discriminação raciais.
Nesses 120 anos, tivemos muitas vitórias, conquistamos muitas coisas, especialmente um amor por nós mesmos, uma alegria, um orgulho de sermos o que somos: brasileiros negros – negros de muitos tons de cor de pele, efeito da mistura, que é uma bela marca da sociedade brasileira. Nesses 120 anos tivemos muitas conquistas e temos muito mais a conquistar. Nesses 120 anos vencemos muitas batalhas e temos muito mais a batalhar. Nesses 120 anos comemoramos muitas vitórias e temos muito mais a comemorar. A escravidão acabou, mas a nossa luta continua!
Oxumaré,o arco-íris ciclo vital multiplicidade dos destinos Foto de Marco Aurélio Luz
Agradeço imensamente ao Drº. Marco Aurélio por esta justa homenagem a Neusa Santos Souza. Estamos em dívidas com nossos irmaõs de luta como Neuza, Jonatas Conceição, Lelia Gonzales, Neguinho do samba e outros (as).
ResponderExcluirEles(as) colaboraram com as ações mas também no legado acadêmico de construção do conhecimento.
Numa sociedade que preza pelo individualismo as vidas desses irmãos e irmã mostraram que a contrução de redes de aprendizagem e solidariedade cultural pode reconstruir nossas identidades dilaceradas. Obrigada a todos da ACRA, especialmente a Narcimária e a Marco Aurélio. Abraços .
Analia Santana
Já estava ansiosa para adquirir e ler o livro "Tornar-se Negro", agora mais ainda.
ResponderExcluirEstou indo nesse momento na Livraria Cultura buscar o meu.
Obrigada prof° Marco Aurélio Luz.
Agradeço ao professor Marcos Aurélio e a ACRA pela homenagem feita a essa minha tia, que nos deixou derepente assim como um vento...
ResponderExcluirProfessor historiador Carlos Átilla.
Obrigado pelo artigo, Marco Aurélio. Entre nós, Neuza Santos Souza é uma ilustre desconhecida. Fiz um livro sobre Beatriz Nascimento e co-escrevi outro sobre Lélia Gonzalez. São nossas ancestrais recentes. Merecem ser lidas e rememoradas.Um abraço.
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