Aproveito o samba Adalgisa (1964), composição e interpretação do nosso saudoso Dorival Caymmi, para trocar algumas ideias sobre essa Bahia “que tá viva ainda lá”. Vou considerar “ainda lá”, como um lugar de origem que torna a Bahia singular.
Caymmi compôs Adalgisa, no tempo em que a Bahia foi colocada no centro do capitalismo transnacional e suas derivações tecnoeconômicas. O recado de Adalgisa é um aviso importante, atravessando o tempo animando-nos a acreditar ainda, numa Bahia que insiste em se manter viva.
Viva, face à teia dos valores que tendem a transformá-la numa metrópole, extensão geopolítica e expansionista de alguns Estados Nacionais com suas supremacias étnicas e territoriais.
Estamos assistindo a imposição de um mercado global, que cria cenários alegóricos forjando um novo sujeito social: o produtor, consumidor, refém das leis do capital.
“Ainda lá” no recado de Adalgisa, é o lugar da recusa à geografia civilizatória europocêntrica, e que mantêm comunidades, estruturadas através do patrimônio civilizatório africano.
São comunidades que continuam expandindo seus valores de civilização, face às imposições espaço-temporais de cunho militar-econômico que tem a pretensão de quantificar, controlar, classificar e estabelecer com a natureza uma relação mediatizada pela ciência como técnica, interferindo substancialmente nos modos de elaboração de mundo característicos da nossa gente.
Que nada mudou inda lá...
A Bahia carrega um rico universo simbólico africano-brasileiro sustentado por modos e formas de comunicação atravessados por narrativas sobre os princípios fundadores que marcam o alvorecer da humanidade, permitindo presentificar acontecimentos míticos, aproximar-nos de tempos imemoriais, das descrições de experiências vividas pelos/as ancestrais, da relação dialética entre vida e morte, rememorar e reverenciar famílias, linhagens, personalidades exponenciais que contribuíram para expandir e fortalecer as instituições, remeter a lugares sagrados, alianças e conflitos, dramatizações que contam a história de afirmação das nossas comunidades.
Na Bahia, transborda a dinâmica ininterrupta da ancestralidade africana, que constitui a corrente sucessiva de gerações que mantêm, com dignidade, o legado dos nossos antepassados.
Adalgisa mandou dizê/ Que a Bahia tá viva ainda lá/ Com a graça de Deus inda lá/ Que nada mudou inda lá...
Os/as mais antigos/as nos contam que quando Oxalá, orixá querepresenta o ar veio a esse mundo, criou os seres humanos, e para cada ser humano criou uma árvore. As árvores carregam o princípio de ancestralidade, representam, portanto, os ancestrais, e são elas que estabelecem a dinâmica da relação entre os seres humanos e a natureza.
Oxalá possui poderes que garantem a existência e, pela sua importância no panteão nagô, merece respeito e atenção. Nesta estética do sagrado, as árvores são as responsáveis pela purificação do ar para que os seres humanos tenham plenitude de vida. Infelizmente as matas,as árvores e toda biodiversidade que a Bahia carrega, estão sendo destruídas pela máxima “time is Money”, colocando em risco o princípio de ancestralidade primordial para toda a humanidade.
Mas graças a Oxalá e o panteão das divindades africanas, a Bahia tá viva ainda lá!Lá, nas comunidades tradicionais afrobrasileiras que reverenciam o mar,os rios,as matas,as árvores...
A natureza, principío seminal de toda existência.Continuamos a cultuar nossas origens, nossos ancestrais,envolvendo nossas crianças e jovens, animando-os a erguerem a cabeça e terem orgulho de ser e pertencer as suas comunidades,que ao longo dos séculos se dedicam a manter a pulsão de vida para que a Bahia não acabe.
“Kosi Ewe, Kosi Orixá/ Sem folhas não há orixá”
(Provérbio nagô).
Salsa da praia vegetal ligado a Oxum
Foto da autora
Se não existissem as folhas, não existiriam os orixás e não existiria o mundo.
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Narcimária Correia do Patrocínio Luz é Doutora em Educação; Pós Doutorado em Comunicação e Cultura; Coordenadora do Programa Descolonização e Educação/CNPQ.
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