Por Marco Aurélio Luz
Imagem disponível em http://www.casarima.com.br/blog/?tag=estampa-africana
Comecemos por (re)definir a noção de “oralidade” para operacionalizarmos nossa reflexão. Para nós oralidade não se limita a “comunicação de boca a orelha”,informações passadas de geração à geração,caminhando por fora da escrita como algo à margem do sistema...
Para nós formas de comunicação constituem formas de vinculação humana, isto é, cultura e sociabilidade que caracterizam a diversidade dos povos riqueza da humanidade.
Formas de comunicação estão baseadas em linguagens, valores e comportamentos institucionais todos sinergicamente estruturados, entrelaçados.
As culturas se caracterizam como desdobramentos de processos civilizatórios de dimensão continental, de tal modo que podemos falar de civilizações africanas, ameríndias e europeias, no que se refere ao Brasil, com diversos povos com suas identidades culturais próprias.
As tradições culturais africanas de origem bantu ou sudanesa como classifica a antropologia, se caracterizam por uma comunicação da participação, isto é, ela se processa de forma direta, interdinâmica, interpessoal ou intergrupal, exigindo a presença física dos participantes.
A religião, embora possua textos escritos que apóiam os processos de transmissão do saber, não são absolutamente fundamentais para a liturgia que se desenvolve no contexto comunitário. Enfim,não é uma religião do texto ou do livro sagrado.
No caso da tradição sagrada dos afro-brasileiros, não é a relação olho-cérebro hiperdimensionada que organiza os sentidos, mas a tatilidade, isto é, a combinação de todos os sentidos que concorrem na transmissão e compreensão das mensagens.
O tato, o olfato, a visão, a audição, o paladar se combinam para num aqui e agora, de acordo com o lugar e a temporalidade litúrgica, decodificarem mensagens através da emoção e das elaborações que caraterizam a comunicação estética que magnífica o sagrado, a relação com o mistério re-ligare.
Códigos e repertórios se entrelaçam para expressar a visão de mundo, a cosmogonia e variados prismas do saber que visam aplacar a angústia existencial proporcionando o enfrentamento dos desafios do desconhecido.
Na tradição africano-brasileira essa sociabilidade entremeada de sacralidade, caracteriza uma vasta comunalidade, isto é, uma rede de alianças comunitárias constituídas pelas distintas comunidades-terreiro e afins, que através da religião asseguram a formação das identidades.
Nesse contexto, ancestralidade significa manutenção, continuidade e expansão da tradição de valores, linguagens, instituições.
Na constituição da comunicação por assim dizer do discurso do sagrado é rigorosamente preservada a essência das classificações constituintes da religião, da mobilização e dinamização de forças propiciatórias, para os nagô expressa na noção de axé.
A taxionomia da cosmogonia se vivencia em diversos planos da estética sagrada, como por exemplo, nas comunicações de um preparo de um determinado alimento da culinária litúrgica, com um passo de dança e gesto com um detalhe de uma vestimenta ou paramento sagrado, com um cântico de música percussiva, o ritmo apropriado, bem como os instrumentos etc. Todo esse complexo de elementos de comunicação formam uma simbologia, ou como alguém já se referiu “A Floresta dos Símbolos”.
O rigor dessa estética litúrgica é garantido pela hierarquia comunitária que se estende pelas heranças sucessivas que formam o devir da ancestralidade.
O poder religioso está vinculado a determinadas famílias ou linhagens que ao longo do tempo fundaram e protegeram e protegem a comunalidade.
Uma série de saudações e modos ou etiquetas de relações comunitárias marcam e exprimem lugares hierárquicos entre os mais antigos e os mais jovens na dinâmica institucional.
A participação assegura caminhos de conhecimento e bem estar resultante do reconhecimento pelas obrigações e preceitos religiosos realizados conforme o destino coletivo comunitário ou individual, mas no seio da comunidade.
A comunidade possui uma temporalidade e uma territorialidade próprias. Seu tempo é escandido pelo calendário litúrgico classificado anualmente e realizado em território sacralizado próprio.
A arte da leitura não se limita a texto, mas além da percepção dos símbolos, expressos na estética litúrgica, ela se apresenta em diversos contextos, histórico ou natural, em que o sagrado tangencia ou toca o profano,“lê-se” interpretando e elaborando de acordo com o repertório de conhecimentos acumulados.
A leitura, mais significativa está relacionada com o oráculo, na tradição nagô, as “leituras” ligadas aos sistemas de Ifá ou ao Erindinlogun,esse último o mais utilizado no Brasil.
Mas a leitura se faz por outros sentidos, que não apenas a relação olho-cérebro, através dos meios de comunicação que mediatizam a troca de mensagens e não exigem a presença do outro aqui e agora,como em outros sistemas.
Na tradição nagô a culinária litúrgica, por exemplo, é um aspecto importante em que o olfato, tato, paladar e visão entram em relações sinérgicas para captar a expressão conceitual que emerge das oferendas e que irão ser compartilhadas na alimentação do banquete comunitário que acontece a cada ritual.
Odor, sabor, textura, cor, composição e apresentação, são elementos conceituais classificatórios que expressam os diferentes aspectos cosmogônicos entre a “comida” de Iemanjá, Xangô, Oxum, Iansã, Oxossi, Ogum, Exu, etc.
No Congresso Afro-Brasileiros de 1935, realizado em Salvador, convidada por Edison Carneiro, Mãe Aninha a Iyalorixá Oba Biyi participou com uma comunicação sobre culinária litúrgica, que além de caracterizar aspectos simbólicos significativos da visão de mundo nagô, constitui também índices de participação no contexto hierárquico comunitário. A responsável pelos segredos e pela organização desse importante aspecto ritual das oferendas que mobiliza axé,possui o cargo de Iyá Base.
Outro aspecto importante a destacar aqui é que a comida sagrada propicia o religare, a ligação com outro plano do existir, a relação entre esse mundo o aiyê com o além o orun.
Contendo axé ela é capaz de proporcionar o contato entre forças que regem o universo, a comunidade preparada e reunida com fervor e emoção.
Nos festivais anuais em que se homenageiam os ancestres ou nos que homenageiam os orixá, o atabaque acompanha a vida, proporcionando através da percussão o som peculiar de cada entidade.
O atabaque é instrumento sagrado, recebe oferendas e é adorado por aqueles iniciados e preparados ritualmente para manejá-los.
O som terceiro elemento resultante está relacionado a Exu, orixá filho, patrono da comunicação das trocas de mensagens, o mensageiro, ojixé e, o senhor dos caminhos, L’onã.
Siwaju
Escultura de Marco Aurélio Luz
De acordo com o Odu Ose-tuwa, uma história conta como Exú se tornou o Siwaju.Ele se torna aquele que vai a frente, guiando os orixá para abrir os caminhos que proporcione a comunicação com Olorum, para que sejam entregues as oferendas capazes de promover a circulação e o fortalecimento do axé.A pena na cabeça é o emblema Egan, que proporciona o poder de realizar essa importante função. A pena vermelha símbolo das mães ancestrais levado por Exu, o torna orixá imprescindivel para a dinamização do sistema Nagô.
Exu Oxise Ebo
Escultura de Marco Aurélio Luz
É o orixá mensageiro que comunica as oferendas. Igba, a cabaça ado-iran, e as cabaças que fazem parte do penteado de Exu em forma de Obé, faca, constituem também o poder do orixá.
O som da percussão se combina com as danças que através da expressão corporal e do repertório de gestos promovem incrível interação estética entre os viventes e as entidades presentes num movimento solene de alegria e felicidade, dialética entre o aiyê e o orun, proporcionado pelo espaço e tempo da comunicação sagrada da religião,fonte contínua de sociabilização, cultura e civilização.
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