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PRODESE E ACRA



VIDA QUE SEGUE...Uma
das principais bases de inspiração do PRODESE foi a Associação Crianças Raízes
do Abaeté-Acra,espaço institucional onde concebemos composições de linguagens
lúdicas e estéticas criadas para manter seu cotidiano.A Acra foi uma iniciativa
institucional criada no bairro de Itapuã no município de Salvador na Bahia, e
referência nacional como “ponto de cultura” reconhecido pelo Ministério da
Cultura. Essa Associação durante oito anos,proporcionou a crianças e jovens
descendentes de africanos e africanas,espaços socioeducativos que legitimassem
o patrimônio civilizatório dos seus antepassados.
A Acra em parceria com o Prodese
fomentou várias iniciativas institucionais,a exemplo de publicações,eventos
nacionais e internacionais,participações exitosas em
editais,concursos,oficinas,festivais,etc vinculadas a presença africana em
Itapuã e sua expansão através das formas de sociabilidade criadas pelos
pescadores,lavadeiras e ganhadeiras,que mantiveram a riqueza do patrimônio
africano e seu contínuo na Bahia e Brasil.É através desses vínculos de
comunalidade africana, que a ACRA desenvolveu suas atividades abrindo
perspectivas de valores e linguagens para que as , crianças tenham orgulho de
ser e pertencer as suas comunalidades.
Gostaríamos de registrar o nosso
agradecimento profundo a Associação Crianças Raízes do Abaeté(Acra),na pessoa
do seu Diretor Presidente professor Narciso José do Patrocínio e toda a sua
equipe de educadores, pela oportunidade de vivenciarmos uma duradoura e valiosa
parceria durante o período de 2005 a 2012,culminando com premiações de destaque
nacional e a composição de várias iniciativas de linguagens, que influenciaram
sobremaneira a alegria de viver e ser, de crianças e jovens do bairro de
Itapuã em Salvador na Bahia,Brasil.


sábado, 21 de maio de 2011

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS PARTE II

Por Lima Barreto

Lima Barreto

Na semana passada vocês acompanharam Castelo contando ao seu amigo Castro as embromações que ele fez para “se dar bem na vida”,ministrando aulas de javanês para o Barão de Jacuecanga sem nunca ter aprendido o idioma javanês.Hoje vocês vão saber como acabará essa história.


Imagem disponível em http://dialogosvisuais.blogspot.com/2011/01/dica-de-leitura-o-homem-que-sabia.html

No filme produzido  em 1998 e disponível na programação da TV Escola,Castelo (interpretado por Carlos Alberto  Riccelli  )aparece  contando ao seu amigo Castro (interpretado por Sérgio Mamberti) as embromações que ele fez para “se dar bem na vida”.Participam também do filme Zózimo Bulbul e Sérgio Viotti.
Boa Leitura!

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Castelo na biblioteca "caçando" dicas para fazer suas embromações em javanês


— O velho — emendei eu — ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, e pareceu que me julgava de fato filho de malaio, e perguntou-me com doçura:

— Então está disposto a ensinar-me javanês?

— A resposta saiu-me sem querer. Pois não.

— O senhor há de ficar admirado — aduziu o Barão de Jacuecanga — que eu, nesta idade, ainda queira aprender qualquer coisa, mas...

 
— Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos...

— O que eu quero, meu caro senhor...?

— Castelo — adiantei eu.

— O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou. Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação. Fora um hindu ou siamês que lho dera em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em javanês. Disse-me que mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz." Meu pai — continuou o velho barão — não acreditou muito na história; contudo guardou o livro. Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deitei-o a um canto e fabr iquei minha vida. Cheguei até esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me lembrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, e não quero que os meus últimos dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para entendê-lo, é claro que preciso entender o javanês. Eis aí.

Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e perguntou-me se queria ver o livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole, porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.

Veio o livro. Era um velho calhamaço, um inquarto antigo, encadernado em couro, impresso em grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a data da impressão. Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.


Logo informei disso o velho barão que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laiade quem sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.


Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e desaprendia.

A filha e o genro ( penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram coisa boa para distraí-lo.

Mas com que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!"


Castelo embromando uma leitura em javanês para  o Barão de Jacuecanga(interpretado por Sérgio Viotti)


O marido de Dona Maria da Glória ( assim se chamava a filha do barão), era desembargador, homem relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse, um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.

Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!... Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia a seus olhos! Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim, uma vida regalada.

Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.

Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo de que me aparecesse pela frente alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me mandou com uma carta ao Visconde de Caruru, para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. — "Qual! retrucava ele. Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês — que portento!"
Os chefes da seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há quem o saiba aqui!"


O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.

A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, consertou o pince-nez no nariz e perguntou: " Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Àsia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no congresso de Lingüística. Estude, leia o Hove-Iacque, o Max Müller, e outros!"


Castelo ganha a confiança do Barão de Jacuecanga


Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios.

O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.

Pus-me com afã no estudo das línguas malaio-polinésias; mas não havia meio!

Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique, Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aosoutros: "Lá vai o sujeito que sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos dointerior, os jornais citavam o meu saber e recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entender o tal javanês. A convite da redação, escrevi, no Jornal do Commércio, um artigo dequatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e moderna...

— Como, se tu nada sabias? — interrompeu-me o atento Castro.

— Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografia, e depois citei a mais não poder.

— E nunca duvidaram? — perguntou-me ainda o meu amigo.

— Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo bronzeado que só falava em língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia. Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês — uf!

Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém, fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e julgara que, por ser eu americano-brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi-guarani. Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe mandar, conforme prometi.

Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e em Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot. Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos, quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.

Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux, recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da República, dias depois, convidava-me para almoçar em sua companhia.

Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.

— É fantástico — observou Castro, agarrando o copo de cerveja.

— Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?

— Quê?

— Bacteriologista eminente. Vamos?

— Vamos.


Batik em seda javanesa

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