A história de como a ciência atrapalhou o jogador brasileiro
Futebol Arte, lúdico e alegre
O treino de juvenis ia animado e um menino se destacando. No
meio-campo, ele recebeu a bola, aplicou dois dribles seguidos no adversário que
o marcava duro e, livre, avançou para o gol quando foi interrompido pelo apito
do treinador, que aos berros o advertiu energeticamente:
-Que negócio é esse? Está pensando que isso aqui é um circo?
Outra palhaçada dessas e sai do treino.
O garoto, que até então vinha mostrando talento e
habilidade, encabulou e não jogou mais nada o resto do treino.
Essa cena, presenciada e a mim contada por Nílton Santos, é
comum hoje em todos os campos onde jovens tentam iniciar sua vocação para o
futebol. Ela faz parte de uma linha de ação assumida de uns anos para cá pela
maioria de nossos treinadores que, em nome de um futebol dito científico e que
, segundo eles, se inspira na escola europeia, proíbe que o jogador tenha
iniciativa em campo.
Baba na Bahia
A difícil linguagem
Essa história de futebol científico ou de laboratório surgiu
por aqui e ganhou adeptos em meados da década de 70 ou, mais precisamente,
depois da copa de 74, na Alemanha. Chegou até nós trazida por um grupo de
treinadores interessado em defender a tese de que o jogador brasileiro
precisava mudar os seus velhos métodos de treinamento, porque no futebol
moderno a velocidade era fundamental e ganhava quem estivesse mais condicionado
para correr os 90 minutos.
Além dos cuidados físicos, condenava-se também o 4-3-3,
usado pela seleção e pela maioria dos clubes, como tática obsoleta. Novos
esquemas precisavam ser implantados, todos eles baseados numa movimentação
constante dos jogadores. Para tanto, eles precisavam ter uma saúde de touro
premiado:
Os novos métodos, que incluíam corridas nas praias e
montanhas, testes de velocidade, intervaltraining e outros nomes importados,
sem dúvida foram de grande utilidade, melhorando visivelmente as condições
atléticas dos jogadores. E o prestigio dos treinadores.
Tornou-se comum ver na seleção ou nos clubes a figura do
preparador, ou fisicultor como eles preferem ser chamados, cercado de sisudos
assessores, todos de cronômetro em punho, a comandar piques de velocidade,
corridas de longa distância e a tomar a pulsação e a batida cardíaca dos
jogadores, com explicações feitas numa linguagem, digamos, aeróbica, de difícil
compreensão para um leigo.
A preparação física passou a ser prioritária. Correr nas
areias da praia ou nas subidas das montanhas era rotina diária de treinamento.
Bons jogadores, prontos para ser escalados, eram aqueles capazes de fazer o
cooper em torno dos 12 minutos. Foi assim que Dirceu chegou a titular a seleção
brasileira. Ninguém era mais veloz do que ele.
Nos intervalos dessa atividade chamada aeróbica--que,
voltamos a dizer, utilíssima para a saúde dos jogadores e sempre obediente ao
princípio do futebol-força—aplicavam-se novas concepções táticas, estas, porém
não tão úteis aos jogadores. Eram métodos de jogo que violavam a índole do
nosso jogador, de difícil assimilação por eles e que acabaram por confundir e
alterar completamente a maneira brasileira de jogar futebol.
Neném Prancha, admirado treinador, sabedoria do futebol Arte
Aos poucos os jogadores foram conhecendo os segredos do novo
estilo de jogo. Assim, tomou conhecimento do overlaping, do ponto futuro, e de
outras novidades pomposamente apresentadas. Se dessem, porém, ao trabalho de
observar com atenção, os jogadores veriam que o overlaping, era apenas o nome
estrangeiro do antigo vai-que-eu-fico, usado por eles em campo, e que o ponto
futuro não passava do popular dá no buraco, muito conhecido também.
Gentil Cardoso vitorioso técnico, pensador do futebol arte
Impressionado, o jogador se deixou levar pelo que julgava
ser futebol moderno e que teve na Holanda da Copa de 74 sua imagem mais
notável. De resto não tinha outra opção. Ou fazia aquilo que o técnico mandava
ou perdia o lugar no time. As instruções eram radicais. Cada jogador tinha uma
missão a cumprir dentro da equipe, baseada na permanente movimentação, jogando
com a bola e sem ela. Reter a bola era crime grave. A demora num passe era
falha e punida e o drible nem se fala. Jogava bem quem se deslocasse rápido ou
soubesse tocar a bola de primeira. Como mostravam os filmes dos jogos europeus,
exibidos como exemplo nas concentrações. Alguns jogadores como os do Vasco no
ano passado e os do Corinthians, se rebelaram. Curiosamente o Corinthians foi
campeão e o Vasco melhorou.
Na verdade nem todos os técnicos seguiam rigidamente essa
escola, não se sabe por que batizada de europeia. Telê Santana foi exceção.
Sempre tentou manter o jogador dentro de um esquema que não lhe tolhesse de
todo a criatividade. Mas entre os técnicos, principalmente entre os que nunca
tinham jogado bola, a ideia do futebol-força, da velocidade de jogo, estava
ligada intimamente a um primoroso condicionamento físico. E dessa forma o
futebol brasileiro foi se transfigurando. Para esses técnicos – muitos
aprenderam futebol na escola- a mudança tinha de ser total para que se jogassem
de uma vez no lixo esquemas como o 4-3-3 e, sobretudo, o individualismo dos
jogadores, embora tanto o 4-3-3 como o talento criativo dos Pelés e Garrinchas
tenham nos dado por três vezes a Copa do Mundo.
A campanha contra o individualismo podia ter seu lado
vantajoso, já que o jogador brasileiro tem o velho hábito de enfeitar jogadas, burilar demais a bola. Mas essa campanha
contra o chamado salto alto não podia chegar a ponto de inibir o jogador dentro
de campo, privando-o de toda a sua criatividade. E disto só escaparam aqueles
que tinham prestígio bastante para saber que não seriam jamais afastados do
time. Sócrates, Zico e companhia.
Menos de 10 anos depois nos parece que esse modismo, europeu
ou não, fracassou entre nós. Os fatos falam melhor: de lá para cá não ganhamos
mais nada no plano internacional. Três copas se foram, taças e torneios menores
também passaram ao largo e, o que é pior, estamos assistindo a uma geração, não
muito pródiga de craques, chegar aos perigosos 30 anos, e vendo surgir outra
assustadoramente vazia de grandes talentos.
Faltam craques ao nosso futebol. Em anos passados, qualquer
torcedor era capaz de declinar em um minuto o nome de 10,15 ou 20 craques de
primeira linha. Hoje, para responder á mesma pergunta, o torcedor, com muita
dose de boa vontade, não chega a enumerar cinco.
Fabuloso jogador, técnico admirado de elaborações filosóficas do futebol arte
Compreende-se que o futebol está sendo também atingido pela
grave crise que sufoca o país. A luta pela sobrevivência nas classes menos
dotadas obriga hoje um pai, menino ainda, no mercado de trabalho, tirando-o das
escolinhas ou dos terrenos baldios onde ele antes podia desenvolver o seu
talento de futuro craque. Atualmente a maioria dos jogadores provém da classe
média(Sócrates, Zico, Falcão, Júnior, Edinho, só para citar os mais famosos).
Mas apesar dessa triste e dura realidade, a nova mentalidade do futebol de
laboratório também é grande responsável pela má qualidade do futebol atual.
Essa mentalidade importada violou as tendências naturais do
jogador brasileiro, sua liberdade, seu talento criativo, que lhe deu fama
internacional.
Beleza e eficiência
Graças a essa criatividade foi que Leônidas inventou a
bicicleta, Didi o chute de curva, Nílton Santos o overlaping particular e Pelé
não sei quantas jogadas de gênio. Como se comportariam esses técnicos de hoje
com Mané Garrincha, que tinha no drible irresistível a sua arma para desmoronar
as defesas adversárias? Provavelmente, Mané seria afastado do time por excesso
de individualismo.
O futebol é um jogo coletivo em que deve ser controlado o
exibicionismo inconsequente, até porque a seleção não poucas vezes pagou por
esse abuso. Mas em nome desse combate não se pode inibir o jogador, retirar
dele o direito de ter sua iniciativa, de mostrar seu talento e sua arte.
Mandar um jogador a campo como se fosse um robô, programado
para cumprir determinada tarefa, traçada nos quadros-negros dos treinadores,
sob pena de ser barrado, acaba sempre por nivelar na mesma mediocridade os bons
e os ruins, os finos e os grossos.
Desdobramento do mundo do futebol na pintura de Portinari
A reação de hoje
Muitas pessoas, inclusive autores famosos que pertencem, por
seus feitos, à história do futebol brasileiro, como Zizinho, Nílton Santos,
Ademir, Jair e tantos outros concordam que o grande mal do futebol atual é dar
pouca bola aos jogadores, que são mais treinados tática e fisicamente, através
de exaustivos exercícios e enfadonhas palestras.
-A física é indispensável- comentava um deles num recente
programa de televisão- mas deviam dar mais treino com bola aos jogadores.
Aperfeiçoar os chutes a gol, a cobrança de faltas, o posicionamento certo e,
acima de tudo, não privar os jogadores da sua liberdade de criar. Essas coisas
é que mereciam ter prioridade.
Hoje uma reação já se esboça e há treinadores –Edu é um
deles- que acreditam mais no talento do jogador. Eles, os jogadores, são a
força maior do futebol brasileiro. Devem receber um moderno preparo físico e
precisam ter em campo o senso exato do jogo coletivo. Mas não é justo acusar os
grandes nomes que se consagraram nas três Copas do mundo de jogarem apenas com
seu talento individual. Ao contrário: eles devem ser vistos como destaques de
uma escola brasileira que, naquelas três campanhas, conquistaram a admiração
mundial pelo admirável e quase irresistível futebol que jogava.
Não é pedir muito, portanto, que se dê a essa nova geração o
direito de jogar mais livremente, devolvendo a iniciativa e aquela improvisação
que, no tempo em que não eram condenadas, levaram o nosso futebol ás suas
maiores glórias.
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Sandro Moreira era jornalista e cronista esportivo.
Faleceu em
29/08/1997
1 Esse artigo foi publicado no Jornal do Brasil em 24/06/1984.
Nota: Fotos e ilustrações disponíveis na internet
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